Translater

segunda-feira, 28 de abril de 2025

Outros virão [613]

 


Com o tempo, passamos a duvidar

se o que se consuma a cada dia nos diz respeito

ou se, o que somos, é uma desmemória à meia-luz

onde não existem mais que uns vagos zumbidos

sem o grasnar das gaivotas.

 

Quase nada sabemos,

o que resta da infância são histórias

mais distorcidas que os sargaços,

abraçamo-nos ao carinho do sol que escasseia

ou à aragem imprecisa,

mas culpada sem provas dos resfriados.

 

As lamparinas votivas tremem de fé

na igreja onde já não rezamos

e paralisam as águas

nos lagos de lembranças desabitados.

 

Não são visíveis os corações esculpidos

nas árvores da vida e as vontades são papéis

que voam empurrados por um vento incerto

à sorte de mãos alheias que raramente os acolhem.

 

Outros virão

para olharem o mundo da mesma janela,

chorosos do sol que há lá fora e, com sorte,

acabarão sem contrições no meio de círios

ou manchados

de infrações que sempre negaram em vida.

 

 

© Jaime Portela, Abril de 2025


segunda-feira, 21 de abril de 2025

Chico-espertice [612]

 


Não devo perder-me
em nevoeiros de abstrações,
pois sei: qualquer teoria
pode ser bela — e o oposto, também.

Ambas cabem
num bem tecido raciocínio,
mas isso, por si só,
nada revela ao mundo.

A mente, por engenhosa que seja,
não tem o direito de esquecer
que demonstrar é despir a realidade,
não vesti-la de argumentos.

Por isso, calo-me
sobre a tal "falta de ética".
Doravante,
para que todos vejam sem véus

e percebam a verdade,
chamar-lhe-ei chico-espertice.

 

 

© Jaime Portela, Abril de 2025


quinta-feira, 17 de abril de 2025

A Via Sacra da Vida [611]

 


A vida é uma nuvem que passa,
desfiando-se ao som do vento
até se perder no horizonte.

 

Da vida,
ficam apenas fragmentos soltos,
torrões esfarelados pela incerteza,
desbotados à distância
pela dúvida míope do que é real.

 

Para quase todos,
a vida resume-se ao saber suado

e rebuscado

ao serviço de feudos ocultos,
como príncipes
que aspiram a um trono que não há.

 

Somos nuvem de um instante,
somos ida sem retorno,
somos memórias que se apagam
pelos caminhos dispersos
da Via Sacra da vida.

 

 

© Jaime Portela, Abril de 2025


segunda-feira, 14 de abril de 2025

Morte pior que a morte [610]



 

O que mais dói, no corpo e na alma,

porque o sentimos pungente,

é a anseio pelas coisas a que não chegamos,

por vezes insignificantes, ilógicas

ou contraditórias como o sol à meia-noite.

 

Esta desordem da mente

algema-nos a um ambiente pesaroso,

num perpétuo caimento num abismo

em que, sabendo-o sem o saber,

sangramos continuamente feridos.

 

Um espaço inóspito encarvoado é, então,

o que germina na alma,

crescendo num desconsolo

mirrado pelo mato viçoso

que come a verdura dos plantios da vida.

 

Tornar as coisas sem peso,

subir a luz até ao nosso olhar

e cortar o mato pela raiz que nos devora

é o melhor caminho

para largar a balsa lenta da ansiedade.

 

Porque não vale a pena sofrer

de uma morte ainda pior que a morte.

 

 

© Jaime Portela, Abril de 2025

segunda-feira, 7 de abril de 2025

O big bang, o buraco negro e Deus [609]

 


Treze mil milhões de anos depois,

aqui estamos nós.

E só há quatro mil milhões de anos

é que moléculas agrupadas em células

construíram a vida.

Ou foi algum cometa que a pariu.

Ou veio de Marte.

Ou foi mesmo Deus que a inventou.

 

Mas tudo e todos acabarão

daqui a mil milhões de anos.

Já não falta muito,

o sol vai explodir

e nada restará do que se pensou

da religião e da política.

Como é o mesmo sol que dá vida

aos abençoados e amaldiçoados,

será a sua ausência que deixará invisível

o nada de santos e pecadores,

o nada de ricos e pobres.

 

Tudo será composto pela soma de nadas

e, na casa do impercetível,

sem portas, janelas e paredes,

dançarão os fantasmas do tempo

ao som das sombras entrópicas

que se arrastam no pó inerte do nada.

 

Oitenta por cento da vida já foi vivida

e o inverno aproxima-se.

Saberemos aceitar a escassez de tudo,

a fadiga prévia do fim

e o desengano crescente dos sonhos?

O buraco negro espera-nos, paciente,

sabendo que lá chegaremos sem vida.

Ou Deus, no Juízo Final,

de braços abertos à vida.

 

 

© Jaime Portela, Abril de 2025