Translater

quinta-feira, 25 de março de 2021

Todos somos suspeitos [324]

 


Nesta mansidão agreste,

vivemos entre exércitos de más-línguas

e legiões amorfas a acreditarem no que parece.

Suspendemos o alento com o credo na boca

entrincheirados na virtude que não temos

e disparamos aromas

com o sabor torto a fel, direito a todos.

Vivemos sem nada palpável

entre as mãos do presente e o corpo do futuro,

numa trágica aparência de anjos

à espera que os demais tudo resolvam.

E, nesta inutilidade

de só vermos nos outros o pecado marcado na pele,

sem vermos os ciscos nos próprios olhos,

ninguém tem culpa de nada e, por isso,

todos somos suspeitos.



© Jaime Portela, Março de 2021


quinta-feira, 18 de março de 2021

Li o teu livro [323]

 


Li o teu livro até de madrugada

e já me ardiam os olhos quando adormeci

a percorrer-te nas entrelinhas.

Pintavas o meu corpo com as mãos

nos segredos do teu, de olhar semicerrado,

como se estivesses presa

à felicidade de um faz de conta de menina.

Mostraste-me todas as telas

penduradas nas paredes do teu corpo,

que se foi desabrochando

à medida que as nossas palavras se amavam.

Acordei abraçado à luz das tuas linhas,

de olhos pregados na tua pele garrida,

não apenas de ideias,

e desperto para continuar a ler a tua realidade.



© Jaime Portela, Março de 2021


quinta-feira, 11 de março de 2021

Não digas sequer uma palavra [322]

 

Não digas sequer uma palavra,

porque ver abrir o desejo

nos teus olhos fechados

é saboreá-lo antes, uma e outra vez,

é senti-lo mais fundo

que o mais alto dos suspiros

a esbracejarem à cadência do teu peito.

Não digas sequer uma palavra

até que o prelúdio desmaie

e a tua voz respire o latejar dos teus seios,

anunciando o que não cabe

à tona arrebatada das palavras

[só à profundidade dos sentidos].

Não digas sequer uma palavra,

porque és tão genuína como o sol

que faz crescer as plantas em silêncio.



© Jaime Portela, Março de 2021


quinta-feira, 4 de março de 2021

O que penso do teu ser [321]

 

O que penso do teu ser, que inteiro

ainda não vejo para além do meu olhar,

é um rio tão denso

que não há margens que cheguem

e o consigam moldar.

Ponderei calar e torcer o destino,

mas sinto o meu fado inscrito

na corrente que decorre do saber-te

ao meu navegar norteada

nesse teu rio em mim afluente.

E neste mar encrespado

da escuta da realidade,

o saber ser na verdade do sentir

há de sempre triunfar,

se perseguirmos o sonho

do que queremos ser, sem danos

nem preces de relógios apressados.



© Jaime Portela, Março de 2021