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segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Olha para o que eu digo… [593]

 


Abraçar doutrinas,

refletindo-as, raramente,

apenas quando, por exceção,

a forca aperta a voz amedrontada,

tendo no resto

das páginas do diário

um registo fora delas,

agindo e legitimando a prática

com teorias que as contradizem,

é abrir um caminho na vida

e depois seguir por atalhos encobertos.

Ter gestos e modos de uma essência

que somos e seguimos de facto

mas que não queremos ser vistos como sendo,

é estar em cena e não seguir o guião

que escrevemos para os outros,

é dizer “olha para o que eu digo,

mas não olhes para o que eu faço”.



© Jaime Portela, Dezembro de 2024


segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Ano novo, vida nova? [592]

 


Tenho andado em palcos

sem saber as deixas para eu falar,

pelo que vou improvisando a cada silêncio.

Por vezes uso roupas de príncipe

sem princesa à vista

e o ponto grita em surdina para chamá-la.

Nem sempre vem.

 

Também ando por caminhos

onde me perco sem bússola nem sextante.

A cada entroncamento,

penso 90 graus de cada vez

e acabo a fazer naus obsoletas

com as cascas dos pinheiros hipócritas

que me cercam de elogios

em que ninguém sinceramente navega.

 

As minhas falas nem sempre são ouvidas,

são mudas que falam a surdos

e acabam por cair angustiadas

em sacos rotos que se amontoam

nos mares dos tempos perdidos,

são lampiões extintos em nevoeiros

e só visíveis com óculos de visão noturna.

 

Ano novo, vida nova?

Se ao menos tivesse Flora no meu leito

sem que Zéfiro soubesse

ou tivesse uma princesa que guardasse

na sua arca dourada os ecos da minha vida.

 

Mas tenho sido

um guardador de peixes rebeldes

que fogem da minha nau não sei para onde

e nem vejo os remos que me levem às falas

para acabar com os impensados improvisos.

 

© Jaime Portela, Dezembro de 2024


segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Se o Menino Jesus nascesse no litoral [591]

 


No lusco-fusco da perceção,

a vida humana,

de crentes, ateus ou agnósticos,

subsiste na dúvida branda.

 

Incertos do que queremos,

ainda que certos nas mortes da guerra

que só a execramos quando a pólvora

perturba o nosso sossego azul

com um erro

cujo ângulo balístico desconhecemos,

somos marionetas que nos interlúdios

dançam músicas de encantar natais.

 

Por vezes, através das janelas,

pressentimos a luz,

mas tudo é indeterminado

como os ruídos noturnos.

 

E nem o Natal nos aclara,

a menos que o Menino Jesus

nascesse de novo no litoral da Rússia,

da Ucrânia, de Israel, da Síria,

da Faixa de Gaza, da Palestina,

de Moçambique, da Etiópia,

do Afeganistão, do Irão, do Iémen

e em todos os litorais dos continentes

dos senhores da guerra.

 

© Jaime Portela, Dezembro de 2024

 

PS: poema inspirado na iniciativa da Rosélia em https://www.idade-espiritual.com.br/2024/12/xv-interacao-fraterna-de-natal-menino.html


segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

Quando o amor chora de sede [590]

 


Quando o amor chora de sede,

há um deserto dentro do peito

e um martelo, impiedoso,

que bate sem trégua na mente.

 

Há rios que outrora dançaram

que ficam sem peixes

na seca terra da razão,

um leito inóspito

onde o sono e o sonho não espigam.

 

O vento,

um sussurro cansado,

não traz chuva nos desejos e as nuvens,

em lamento,

carregam apenas uma névoa de dúvidas.

 

E, no horizonte,

não há sequer a espera nem a esperança

de um sinal de mudança,

há uma parede, uma angústia que não cede

quando o amor chora de sede.

 

 

© Jaime Portela, Dezembro de 2024


segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

À mesa do absurdo [589]

 


Por vezes, em noites de vigília,

sentimos a grandeza de sermos grandes

sendo pouco mais que insignificantes.

Experimentamos, com eloquência,

discursos sobre ideias

que nem um erudito monge diria

consubstanciado em Cristo

no remanso da sua cela de pedra.

 

À mesa do absurdo

concebemos teorias

como a conversão dos ímpios autocratas

e resplandecemos, boquiabertos,

no virtual ocaso da guerra

colocando o anel da resignação

nos seus dedos assassinos,

virando bondosos, esmeralda cravada

no seu desamor arrebatado.

 

De nada valem estas idiotices,

mas o confronto não nos derrota, liberta-nos,

porque temos a dimensão do que sentimos.

 


© Jaime Portela, Dezembro de 2024


segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Comemorações [588]

 


Há disparates inconscientes,

por carências mentais,

com o mesmo automatismo

que os instintos do corpo,

tal como a administração

do estômago ou dos intestinos

fazem das suas excreções.

Mas a compreensão da leviandade,

sem ato de contrição,

é um atentado à inteligência.

E há memórias salgadas, ou temperadas

com outros condimentos impúdicos,

que procuram turvar os factos

e a paisagem dos contextos a seu favor.

Comemorar os ziguezagues de uma revolução,

por carências mentais ou leviandade,

colorindo os causadores dos mortos

com outras cores,

é um insulto à memória coletiva.

 

© Jaime Portela, Novembro de 2024

 

 

PS: As comemorações do 25 de Novembro de 1975 a realizar hoje na Assembleia da República (pela primeira vez em 49 anos) é polémica e divide os partidos políticos e as pessoas. Acha que faz sentido comemorar datas deste tipo?


segunda-feira, 18 de novembro de 2024

A obrigação de informar [587]

 


Para que as flores da verdade

floresçam depois de pisadas,

há que inventar a sincronia das palavras

boleadas na razão e nos factos

e evitar os antídotos que destruam

o viço de flores de outras cores.

 

Porém, menções às divergências,

de maxilas esfalfadas

na intenção de melhores resultados,

onde os pontos de vista contrários

são como as cerejas,

são atiradas pelas janelas partidas

e caem mortas na rua dos tabus.

 

Porque, no caminho

onde a difusão requer lógica

para que se torne compreensível,

a vastidão de análises sem ética,

que repetem mensagens disruptivas

exibidas até à exaustão,

disfarça a obrigação de informar.

 

© Jaime Portela, Novembro de 2024