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segunda-feira, 14 de abril de 2025

Morte pior que a morte [610]



 

O que mais dói, no corpo e na alma,

porque o sentimos pungente,

é a anseio pelas coisas a que não chegamos,

por vezes insignificantes, ilógicas

ou contraditórias como o sol à meia-noite.

 

Esta desordem da mente

algema-nos a um ambiente pesaroso,

num perpétuo caimento num abismo

em que, sabendo-o sem o saber,

sangramos continuamente feridos.

 

Um espaço inóspito encarvoado é, então,

o que germina na alma,

crescendo num desconsolo

mirrado pelo mato viçoso

que come a verdura dos plantios da vida.

 

Tornar as coisas sem peso,

subir a luz até ao nosso olhar

e cortar o mato pela raiz que nos devora

é o melhor caminho

para largar a balsa lenta da ansiedade.

 

Porque não vale a pena sofrer

de uma morte ainda pior que a morte.

 

 

© Jaime Portela, Abril de 2025

segunda-feira, 7 de abril de 2025

O big bang, o buraco negro e Deus [609]

 


Treze mil milhões de anos depois,

aqui estamos nós.

E só há quatro mil milhões de anos

é que moléculas agrupadas em células

construíram a vida.

Ou foi algum cometa que a pariu.

Ou veio de Marte.

Ou foi mesmo Deus que a inventou.

 

Mas tudo e todos acabarão

daqui a mil milhões de anos.

Já não falta muito,

o sol vai explodir

e nada restará do que se pensou

da religião e da política.

Como é o mesmo sol que dá vida

aos abençoados e amaldiçoados,

será a sua ausência que deixará invisível

o nada de santos e pecadores,

o nada de ricos e pobres.

 

Tudo será composto pela soma de nadas

e, na casa do impercetível,

sem portas, janelas e paredes,

dançarão os fantasmas do tempo

ao som das sombras entrópicas

que se arrastam no pó inerte do nada.

 

Oitenta por cento da vida já foi vivida

e o inverno aproxima-se.

Saberemos aceitar a escassez de tudo,

a fadiga prévia do fim

e o desengano crescente dos sonhos?

O buraco negro espera-nos, paciente,

sabendo que lá chegaremos sem vida.

Ou Deus, no Juízo Final,

de braços abertos à vida.

 

 

© Jaime Portela, Abril de 2025


segunda-feira, 31 de março de 2025

A gente [608]

 


A gente irrepreensível dos gentios

é a beleza espiritual da gente que há.

A pobreza não existe quando todos são pobres

e ninguém peca  quando os atos

com e sem pecado se confundem.

 

A gente irrepreensível dos religiosos

é a beleza espiritual da gente que não há.

A riqueza existe quando há pobres

e há pecado enquanto houver pobreza.

 

A gente irrepreensível do nirvana

é a beleza espiritual de não haver gente.

A pobreza e a riqueza

são castas que não se fundem

num estado a que ninguém chega.

 

 

 

© Jaime Portela, Março de 2025


segunda-feira, 24 de março de 2025

Nunca amamos [607]

 


O amor  é, porventura,

o resultado

de uma longínqua influência religiosa.

 

É uma indumentária tecida pela imaginação

para ornamentar outros seres

em que o nosso pensamento se convence

que o enfeitamento lhes serve.

 

Mas não há roupagens eternas e,

mais cedo ou mais tarde,

debaixo do traje da ideia que fizemos,

que se evapora,

vemos a nudez da realidade do ser humano.

 

O amor, então,

é uma vereda para o desencanto,

que só não o é

se determinarmos mudar de fantasia

a cada passo

para que se atualize a aparência

do ser por nós vestido.

 

Na verdade, nunca amamos,

amamos o conceito que temos de alguém.

 

 

© Jaime Portela, Março de 2025


segunda-feira, 17 de março de 2025

O jogo da vida [606]

 


Num naipe desconhecido,

porque o baralho é descomunal,

somos uma das cartas

cujo valor comparado ignoramos,

a menos que sejamos atletas.

 

A comparação é impossível,

somos quase cegos com dúvidas

e não conhecemos o jogo dos outros

por não sabermos se fazem bluff

ou se dizem a verdade.

 

Vamos, então,

tomando as imagens por realidade

ao ponto de suspeitarmos

se o que somos é uma representação

de uma outra identidade.

 

E é com a incerteza dos trunfos

da ficção que nos acompanha

que o jogo continua de facto,

mas sem prognósticos fiáveis.

 

 

 

 

 

© Jaime Portela, Março de 2025


segunda-feira, 10 de março de 2025

A felicidade [605]

 


Resignação é submissão,

é desistir de querer mais e melhor.

Mas se o vencedor fica conformado

depois da insatisfação que o levou à vitória,

também fica submisso à sua nova condição.

 

Os triunfadores, quando satisfeitos,

perdem os atributos que os impulsionaram

para a tenacidade que lhes deu o sucesso.

 

A satisfação

é apanágio dos conformados

que não têm a fibra do vencedor.

Mas os satisfeitos aparentam ser felizes.

E os insatisfeitos, serão felizes?

 

Será que a felicidade é uma herança

do sangue, da paisagem ou do clima

ou é uma conta feita noutra balança

que por instinto vem ao de cima?

 

 

 

© Jaime Portela, Março de 2025


segunda-feira, 3 de março de 2025

A esperança [604]

 


Sem esperança, há quem diga

que a vida é mais difícil porque é vazia.

Outros há que afirmam

que com ela há uma ilusão

e é um sintoma de impotência.

 

Eu sinto-a como um banal

e estranho panorama

que observo como a um quadro de teatro

de uma novela vulgar, sem meada,

em cena para distrair os sentidos,

ou uma dança sem música de uma brisa

que, com sorte,

apenas faz oscilar arbitrariamente

algumas folhas irrelevantes.

 

Mas, senti-la, é ter alento

para que aconteça o que queremos

quando nada podemos fazer.

 

 

© Jaime Portela, Março de 2025