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segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Governar é preciso [642]

 


É frequente ver-me surpreendido

no epicentro do assombro

perante a justiça

quando tem dois pesos e duas medidas,

perante a ordem

quando é dito que há desordem e vice-versa,

perante a varonia mental

quando é manifesto o declínio,

perante a astenia da mente

em períodos em que a força é necessária.

Mais assombroso ainda

é ver tantos honrosos sonhos

desperdiçados no lixo,

tantos anseios

afogados no mar da mediocridade

a salgar a memória das sereias.

Oh Pátria minha, abandonaram-te

e usam o barco para navegar à vista

sem saberem qual o porto de chegada.

Governar é preciso,

mas sem leme e ambição é um desgoverno.

 

 

© Jaime Portela, Novembro de 2025


segunda-feira, 10 de novembro de 2025

Invisíveis [641]

 


Somos invisíveis,

vemo-nos sem nos vermos uns aos outros.

E, se nos vemos,

por mas parecido que seja com os originais verdadeiros,

vemos outros seres.

Naufragamos nas palavras dos outros,

os outros nas nossas

e sofremos de uma incurável surdez da alma.

E, não raramente,

dormimos no enfado da satisfação

que os outros semeiam por palavras.

Não falando da voz dos regatos,

das árvores e de outros burburinhos alheios,

onde tudo é um nevoeiro

que escorre condensado

nas janelas da nossa invisibilidade.

 

 

© Jaime Portela, Novembro de 2025


segunda-feira, 3 de novembro de 2025

A mentira é uma arte [640]

 


Já que, porventura, nem tudo é inventado,

que o gosto extasiante de mentir seja incurável.

 

Ainda que imbecil, a mentira é uma arte

e tem toda a sedução do vício

no permanente feitiço de não ser descoberta,

ou por ser descoberta por quem não se importa

e sempre nos aplaude.

 

A depravação que não respira o prazer,

não tem a raiva de nos acarretar desgosto

e tomba caída numa inutilidade paradoxal

como um boneco de criança estragado

com que um maior pretendesse recrear-se.

 

Que gestos têm uma aparência tão estética,

como algo contrafeito melhor que o original,

que mentem à sua essência e contestam o propósito?

 

Mas, se a mentira nos der

descontrolado contentamento,

digamos o que aparenta ser autêntico,

de vez em quando, para a iludirmos,

ainda que alguns percebam

que estamos a dizer o contrário do que parece.

 

E quando nos sentirmos aflitos,

é hora de parar e brincar,

para que a angústia não se expresse séria

na verdade que se vira contra nós.

 

 

© Jaime Portela, Novembro de 2025


segunda-feira, 27 de outubro de 2025

O ruído nas palavras [639]

 


Os outros não apreciam as nossas palavras

com os ouvidos com que nos escutamos ao afirmá-las.

Quando nos escutamos,

até o ouvido interior com que nos escutamos

não ouve o mesmo que os ouvidos externos.

Se nos enganamos, escutando-nos,

logo nos podemos questionar

como é que alguém nos entenderá.

O prazer de se sentir percebido, é impossível

a quem não se quer e/ou não se é percebido,

coisa que muito sobrevém aos complicados

e, por isso, incompreendidos.

Os inteligíveis, poucos são,

aqueles cuja mensagem é a mesma

no emissor e no recetor, sem ruídos,

esses nem precisam de ter o receio

de não serem compreendidos,

esquecendo os duros de ouvido.

E, assim, nunca saberemos,

só podemos imaginar,

de quantas desconchavadas ideias

é construída a perceção

que os outros têm de nós pelo que dizemos.

 

 

© Jaime Portela, Outubro de 2025


segunda-feira, 20 de outubro de 2025

A indiferença da pele [638]

 


Se moras nos subúrbios da vida

e sonhas na floresta das tuas fantasias,

ao teu remanso verde,

por certo imaturo,

nem os rumores dos teus gestos se mostram.

Se repousas nos teus sonhos

como se fossem searas imensas,

dos cálices da tua renúncia

apenas ingeres o choro de falsa viuvez

e nem vês os comboios que passam por ti.

Então, os dias claros,

o céu limpo sem nuvens

e o piano que espera as tuas mãos,

num bucolismo ausente do som

do alvoroço polifónico da vida,

têm o paladar insípido do que não possuis.

E tudo não passa

de uma flauta mágica, mas silenciosa,

por onde passas repetidamente

a indiferença da pele a caminho do nada.

 

 

© Jaime Portela, Outubro de 2025


segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Hidroavião barulhento [637]

 


Há pombas brancas

que dançam nas tuas mãos

e a tua boca tem pássaros

que aos meus sentidos vêm ciciar.

Nos teus movimentos,

vejo-te andorinha quando te levantas,

cotovia quando me olhas

ou albatroz nas tuas fúrias

de vaidosa desinteressada.

És um bulício de asas,

um hidroavião barulhento

que assusta as gaivotas

que querem pousar no meu lago.

 

 

© Jaime Portela, Outubro de 2025


segunda-feira, 6 de outubro de 2025

Por isto ou por aquilo [636]

 


Por isto ou por aquilo

há ideais, que são nobres,

que acabam no lixo,

como há francos desejos

que se extraviam

nos turbilhões da vida.

Mas também porque

a energia sem agilidade

é um corpo quase morto

e a agilidade sem energia

é uma pena levezinha

a voar sem nenhum vento.

 

 

© Jaime Portela, Outubro de 2025


segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Alegretes [635]

 


Surpreende-me a alegria

dos que não sabem que são infelizes.

O seu quotidiano,

em favelas ou palácios,

é inundado por tudo

o que compreenderia uma opressão

face a um sentir autêntico.

Sendo a sua vida aérea,

o que os devia fazer padecer

atravessa-os sem lhes beliscar o ânimo

e são como alguém com uma dorzita

a quem lhe saíram milhões num sorteio.

Possuem a fortuna da andança

de um viver inconsciente,

uma dádiva dos Deuses,

e são idênticos e elevados como Eles

no júbilo e no sofrimento.

Como eu gostava de ser como vós,

meus queridos alegretes.

 

 

 

 

© Jaime Portela, Setembro de 2025


segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Soldado de chumbo [634]

 


Os teus fios de joias distraídas

viram os teus lábios nos meus

sem celebrar o destino,

que seria despido

do perfume das rosas vermelhas.

Eram cravos negros sem esperança

que habitavam os teus olhos,

que sabias que eu sentia

nos teus beijos indecisos e sofridos.

Ainda assim,

longe das rosas e perto dos cravos,

o mar não existia nas cascatas do fascínio,

a água era algodão doce

desencrespada por sossegos.

E soube dos teus segredos e percebi

o soldado de chumbo na tua cascata,

numa perícia imóvel,

violenta e permanente,

mas não soube se era medo ou timidez

que inibia a denúncia

ou a fuga implantada nos teus sonhos.

 

 

© Jaime Portela, Setembro de 2025