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segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Neste vale à concertina [578]



O que me vale

é este sol que não me queima,

a bordalesa deste Lima a verdegar

e a serenata das Festas da Senhora da Agonia.

 

O que me estraga

é a lampreia a nadar em vinho verde,

a chieira das mordomas de peito dourado

e as caldeiradas bem regadas na Ribeira.

 

O que me encanta

é a chuva abençoada no verão,

a vaca das cordas que estranhamente não escorna,

as papas e o sarrabulho limianos.

 

O que me salva

são as moçoilas das veigas da Areosa,

de Santa Marta, da Meadela ou de Carreço,

que dançam melhor o vira de socas

que as bailarinas do Bolshoi de meias pontas.

 

O que me engorda

é a broa, a sardinha e o cozido à portuguesa,

o bacalhau que já não é da nossa seca

e tudo o que é bom e que faz mal.

 

O que me adoça

é a torta de Viana em qualquer lado,

as Bolas de Berlim do Natário

e o pão de ló que o Jorge Amado amava.

 

O que me enleva

é este Minho sempre verde

no vira que não vira na amizade

e já não vira varapaus às bordoadas.

 

O que me dói

é este mar que é um cemitério

de pescadores que não voltam

deixando órfãos e viúvas sem amparo na Ribeira.

 

O que me alegra

é o canto aguerrido ao desafio

de Barreiros e Canários

que abundam neste vale à concertina.

 

O que me inspira

é o pegar das palavras pelos cornos

mesmo ditas sem capa nem espada

sem trompetes nem passo dobles

das noites de tertúlia no Taurino.

 

 

© Jaime Portela, Setembro de 2024


segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Réquiem pelos ENVC* [577]

 


Entre as leiras da Areosa

e o pacato rio Lima,

entalado pelo mar

contra o Campo da Senhora da Agonia,

com a descurada visão de Santa Luzia,

o trabalho era porco, pesado e perigoso.

 

Mas saíam navios pela barra

como filhos ingratos que jamais regressariam

à casa onde deixavam os pais,

alguns mortos e muitos vivos.

 

Houve o tempo, já esquecido,

dos rebites cravados a fogo de carvão.

O tempo da escravatura dos balões

que mandavam operários para casa

de mãos a abanar

sempre que chovia ou o trabalho diminuísse.

 

Houve o tempo do traçado das curvas do navio

desempoladas de joelhos com virotes,

como quem reza,

até que os computadores pusessem fim

a tão sacrificial religião.

 

Houve o tempo da surdez por tanto ruído

e das doenças dos pulmões,

até que surgissem máscaras e tampões.

 

Houve o tempo do trabalho descalço

e das quedas dos andaimes geringonças,

até que chegasse calçado seguro

e andaimes sem pranchas já podres.

 

Resistimos à loucura de patrões

e à dança de cadeiras mancas

que a revolução pariu.

Resistimos à queda do Escudo

porque fomos salvos pela queda do Escudo.

 

Até esperamos por Godot,

mas nem Beckett nos ouviu,

não resistimos à inaptidão infantil da gestão

nem ao malandro arbítrio do poder.

 

 

© Jaime Portela, Setembro de 2024

 

 

*ENVC – Estaleiros Navais de Viana do Castelo – dedicava-se à construção e reparação navais. Há cerca de 10 anos, foram despedidos todos os seus trabalhadores (mais de 600). Venderam os equipamentos a uma empresa que iniciou a mesma atividade pagando um aluguer mensal quase simbólico ao Estado (proprietário do terreno).

Da queda do Escudo (moeda portuguesa da altura): um contrato de 1972 ou 1973, para 2 navios químicos com cerca de 180 metros de comprimento, foi feito em Escudos, que começou a desvalorizar-se logo de seguida. Foi um desastre, o dinheiro recebido para os 2 navios foi necessário quase todo para o primeiro. O prejuízo levaria à falência se não fosse a nacionalização da empresa. Meia dúzia de anos mais tarde, foi assinado um contrato em dólares para 2 navios para o Brasil de dimensão idêntica. E como o Escudo continuava a desvalorizar os lucros foram enormes (1 dólar, de 40$00 no início, estava a 140$00 no final).


segunda-feira, 2 de setembro de 2024

A parca intolerância à pobreza [576]

 


O lar era de pedra, de pedra tão incerta

que estava semeado de janelas.

Sempre abertas, não havia outras.

O vento entrava e saía como um turista.

 

A terra batida era o chão do casebre,

sem divisões, um “open space” onde a pobreza

se partilhava alegre entre a lareira

e as enxergas coletivas multiusos.

 

Já os filhos eram tantos

que lhes trocavam os nomes, quando a gravidez

bateu de novo à porta sem tranca da mãe.

Mas diziam que num lar feliz

teria de haver pão e vinho, que raramente tinham,

e bafo de menino, que havia em abundância.

 

Depois das dores, a surpresa de dois gémeos.

Inventaram uns paninhos, umas camisas,

irreconhecíveis, rasgaram tudo aos pares.

e sobreveio um seio para cada um dos nascidos.

 

A pobreza não é admissível para sempre,

mas nascem mais pobres no mundo

do que a nossa parca intolerância abarca.

 

 

 

© Jaime Portela, Setembro de 2024