Translater

segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Alegretes [635]

 


Surpreende-me a alegria

dos que não sabem que são infelizes.

O seu quotidiano,

em favelas ou palácios,

é inundado por tudo

o que compreenderia uma opressão

face a um sentir autêntico.

Sendo a sua vida aérea,

o que os devia fazer padecer

atravessa-os sem lhes beliscar o ânimo

e são como alguém com uma dorzita

a quem lhe saíram milhões num sorteio.

Possuem a fortuna da andança

de um viver inconsciente,

uma dádiva dos Deuses,

e são idênticos e elevados como Eles

no júbilo e no sofrimento.

Como eu gostava de ser como vós,

meus queridos alegretes.

 

 

 

 

© Jaime Portela, Setembro de 2025


segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Soldado de chumbo [634]

 


Os teus fios de joias distraídas

viram os teus lábios nos meus

sem celebrar o destino,

que seria despido

do perfume das rosas vermelhas.

Eram cravos negros sem esperança

que habitavam os teus olhos,

que sabias que eu sentia

nos teus beijos indecisos e sofridos.

Ainda assim,

longe das rosas e perto dos cravos,

o mar não existia nas cascatas do fascínio,

a água era algodão doce

desencrespada por sossegos.

E soube dos teus segredos e percebi

o soldado de chumbo na tua cascata,

numa perícia imóvel,

violenta e permanente,

mas não soube se era medo ou timidez

que inibia a denúncia

ou a fuga implantada nos teus sonhos.

 

 

© Jaime Portela, Setembro de 2025


segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Da vida [633]

 


Se não pudermos obter algo de notável da vida,

exploremos pelo menos obter algo

de não podermos obter algo de notável da vida.

Façamos da insolvência uma glória,

algo afirmativo e alicerçado com pilares,

grandeza e aceitação da vida.

 

Se a existência não nos concedeu

mais que uma frigideira como prisão,

como a que Salazar oferecia aos opositores,

tentemos decorá-la

com os vestígios dos nossos sonhos,

esboços de cores fortes,

cinzelando o nosso desprezo

na dura hipocrisia das paredes que nos cercam.

 

 

© Jaime Portela, Setembro de 2025


segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Alzheimer [632]

 


O nevoeiro

retira gradualmente as mãos do pensamento.

Os gestos ficam desorganizados, até suicidas,

à espera que as curvas sinuosas das andorinhas

indiquem o caminho sem destino conhecido.

A espada invisível quase toca no pescoço

e a fala encurta o acento

numa insciência tónica gradativa.

Os desconjuntos das palavras não rimam

e andarilham em ziguezagues hilariantes

por atalhos aleatórios incitados pelo vento.

Cada miscelânea da memória

plasmada pelos sonhos na realidade

circula em contramão

e Deus e o Diabo

estão cada vez mais enovelados.

Ainda que chovam ajudas

a mirração do propósito acaba num rio sem caudal.

A demência abre a porta e alimenta-se da memória

até que fica dona das palavras e dos gestos

até ao fim, afortunadamente ignorado.

 

 

© Jaime Portela, Setembro de 2025


A Doença de Alzheimer é uma doença neuro degenerativa crónica e a forma mais comum de demência. Manifesta-se lentamente e vai-se agravando ao longo do tempo. O sintoma inicial mais comum é a perda de memória a curto prazo, com dificuldades em recordar eventos recentes. Os primeiros sintomas são geralmente confundidos com o processo normal de envelhecimento. À medida que a doença evolui, o quadro de sintomas inclui dificuldades na linguagem, desorientação, perder-se com facilidade, alterações de humor, perda de motivação, desinteresse por cuidar de si próprio, desinteresse por tarefas quotidianas e comportamento agressivo. Em grande parte dos casos, a pessoa com Alzheimer afasta-se progressivamente da família e da sociedade. Gradualmente, o corpo vai perdendo o controlo das funções corporais, o que acaba por levar à morte. Embora a velocidade de progressão possa variar, geralmente a esperança de vida após o diagnóstico é de três a nove anos. (in Wikipedia).


Este poema foi escrito com base na observação desta doença em 3 pessoas da família.


segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Alterações climáticas [631]

 


Curvado sobre a terra

a fazer regos para que a água passe

e regue o milheiral na perfeição,

cavo com o jeito dos meus antepassados.

Ao mesmo tempo,

desço um rio bem largo e caudaloso

dentro de um barco a remos

evitando dragões que dormem nas margens.

E eis que salta uma rã aos meus pés

e um dragão cospe fogo

por cima das águas turvas do rio.

O susto e o desassossego misturam-se,

salto para o rego seguinte,

que ainda está seco,

e remo depressa para fugir ao dragão.

As duas coisas são claras como água

de uma fonte cristalina:

a terra molhada da enxurrada

que os meus pés descalços pisam

e a quilha do barco em terra seca

onde os remos proclamam

uma contínua chiadeira por falta de óleo.

Olho para trás e vejo que o milho

está a ser queimado pelos dragões.

O convés está cheio de gente,

a assistir, insegura e curiosa,

enquanto come pipocas e bebe coca-cola

a olhar para o espetáculo da fumarada.

 

 

© Jaime Portela, Setembro de 2025