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segunda-feira, 24 de novembro de 2025

O mundo dói-me [643]

 


O mundo dói-me, moral e até fisicamente,

por um reflexo instintivo da alma na mente.

Ou da mente na alma.

Induz-me num desassossego de todas as coisas que,

nada omitindo,

não suprime as nuvens mais distantes.

Porém, ainda que não me arrisque

no precipício de pensar

que uma realidade possa ser outra

apenas porque se acham de mãos dadas,

como a pobreza e a fome,

ou que a processão que o espírito tem do cérebro

seja mais que uma subordinação,

acredito que existe entre a alma e a mente

um vínculo sujeito a refregas.

Assim, será por causa das diferenças de vínculos

que há altercações,

sendo que o mais usual

é a pessoa mais reles aborrecer a que o é menos.

E é por isso que o mundo nos dói,

somos todos iguais, mas as diferenças são abissais.

 

 

© Jaime Portela, Novembro de 2025


segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Governar é preciso [642]

 


É frequente ver-me surpreendido

no epicentro do assombro

perante a justiça

quando tem dois pesos e duas medidas,

perante a ordem

quando é dito que há desordem e vice-versa,

perante a varonia mental

quando é manifesto o declínio,

perante a astenia da mente

em períodos em que a força é necessária.

Mais assombroso ainda

é ver tantos honrosos sonhos

desperdiçados no lixo,

tantos anseios

afogados no mar da mediocridade

a salgar a memória das sereias.

Oh Pátria minha, abandonaram-te

e usam o barco para navegar à vista

sem saberem qual o porto de chegada.

Governar é preciso,

mas sem leme e ambição é um desgoverno.

 

 

© Jaime Portela, Novembro de 2025


segunda-feira, 10 de novembro de 2025

Invisíveis [641]

 


Somos invisíveis,

vemo-nos sem nos vermos uns aos outros.

E, se nos vemos,

por mas parecido que seja com os originais verdadeiros,

vemos outros seres.

Naufragamos nas palavras dos outros,

os outros nas nossas

e sofremos de uma incurável surdez da alma.

E, não raramente,

dormimos no enfado da satisfação

que os outros semeiam por palavras.

Não falando da voz dos regatos,

das árvores e de outros burburinhos alheios,

onde tudo é um nevoeiro

que escorre condensado

nas janelas da nossa invisibilidade.

 

 

© Jaime Portela, Novembro de 2025


segunda-feira, 3 de novembro de 2025

A mentira é uma arte [640]

 


Já que, porventura, nem tudo é inventado,

que o gosto extasiante de mentir seja incurável.

 

Ainda que imbecil, a mentira é uma arte

e tem toda a sedução do vício

no permanente feitiço de não ser descoberta,

ou por ser descoberta por quem não se importa

e sempre nos aplaude.

 

A depravação que não respira o prazer,

não tem a raiva de nos acarretar desgosto

e tomba caída numa inutilidade paradoxal

como um boneco de criança estragado

com que um maior pretendesse recrear-se.

 

Que gestos têm uma aparência tão estética,

como algo contrafeito melhor que o original,

que mentem à sua essência e contestam o propósito?

 

Mas, se a mentira nos der

descontrolado contentamento,

digamos o que aparenta ser autêntico,

de vez em quando, para a iludirmos,

ainda que alguns percebam

que estamos a dizer o contrário do que parece.

 

E quando nos sentirmos aflitos,

é hora de parar e brincar,

para que a angústia não se expresse séria

na verdade que se vira contra nós.

 

 

© Jaime Portela, Novembro de 2025