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segunda-feira, 4 de agosto de 2025

O jornalismo é uma guerra [627]

 


Bebemos apenas os títulos

sem mexermos as cartilagens.

Ou, no máximo,

os lides ou preâmbulos.

E nem percebemos que o corpo

tem um líquido diferente

e normalmente mais macio.

 

Jornalismo e sensacionalismo,

sem contrapeçonhas visíveis,

passaram a rimar gota a gota

em toneladas de manchetes roliças

a bem das santas audiências ou tiragens.

Embaraçam o caminho alheio,

ferem e destroem os outros a frio

à custa de remotas suspeitas.

 

O sucesso pertence a quem não sente.

O jornalismo é uma guerra

e a notícia é a síntese da batalha.

 

© Jaime Portela, Agosto de 2025


segunda-feira, 28 de julho de 2025

Compradores de inutilidades [626]

 


Os compradores de inutilidades

são mais inteligentes do que parecem,

constroem fantasias

e imitam as crianças nas compras.

 

As pequenas coisas supérfluas

que os seduzem,

conquistam-nos do modo contente

de uma criança

que coleciona búzios na areia do mar.

 

Sonham com eles fechados nas mãos

porque, se desaparecem,

perdem pedaços do sonho

e choram como um todo-poderoso

a quem tirassem

o mundo recém-construído.

 

 

© Jaime Portela, Julho de 2025


segunda-feira, 21 de julho de 2025

Mantos dourados [625]

 


Um lago sossegado reflete o céu

mas, no fundo imerso,

há enigmas que sempre virão à superfície

como o azeite.

 

A altivez que encobre a corrupção

tem mantos dourados,

ornamentados com palavras de glória

que escondem as sombras da história.

 

Quando o espelho protetor se quebra,

a imagem desfoca o enfeite

e o pânico leva à gaguez

ou à fuga para a frente

de uma arrogância acrescentada

num castelo feito de bravatas

e reptos para um duelo,

construindo um novo foco.

 

O riso torna-se fumaça, esconde a incerteza,

mas a verdade rasgará o véu e,

sob a fachada de força e honradez,

a essência surgirá despida e vergonhosa,

com o trono a ruir sob os seus pés.

 

Ou talvez não,

se o político corrupto tiver amigos na Justiça.

 

 

© Jaime Portela, Julho de 2025


segunda-feira, 14 de julho de 2025

Piruetas [624]

 


O vício do ilógico

e da contradição

é o contentamento boçal

dos descontentes.


As pessoas normais

dizem tolices por vaidade

e dão pancadinhas

nas costas dos amigos

por exaltação.


Os cegos à emoção e ao júbilo

apenas mostram

pequenas atitudes da vida

dando piruetas com a mente.

 

 

© Jaime Portela, Julho de 2025


segunda-feira, 7 de julho de 2025

Não uso cocaína [623]

 


Não uso cocaína,

haxixe ou outras drogas,

os meus incentivos são sensíveis

à espuma de um café

e ao fumo de um cigarro.

 

Isso basta-me

para saber mentir com a verdade porque,

sendo social,

a arte precisa de estímulos

para se entranhar

nas almas sensíveis ou vigilantes.

 

Se a construção mente,

ela também nos brinda com a verdade,

que não existe,

através do embuste da ficção.

 

 


© Jaime Portela, Julho de 2025


segunda-feira, 30 de junho de 2025

Tudo é alegre e solidário [622]

 


Tudo é alegre e solidário

no âmago das nobres almas felizes

na festa que não dura mais que uns vapores,

enquanto as palavras,

que parecem sentidas,

tentam seduzir a indecisão dos calados,

tida por timidez.

Na contradança festiva,

empolgada na repetição dos slogans

e nos vai-acima vai-abaixo do jantar,

há sempre uma ligação etilizada

entre os altruísmos e os digestivos

e são inúmeras as intenções

que padecem das metáforas dos copos

ou da redundância da sede.

 

 

© Jaime Portela, Junho de 2025


segunda-feira, 23 de junho de 2025

No palácio [621]

 


No palácio

não há assento para todos os deuses políticos

que se rejeitam uns aos outros,

que procuram o poder

com ideais que vão caindo no estrume

se ainda não o são.

Sem limites,

cada um promete tudo a todos

e a coerência e a impossibilidade

são assobios e pios inaudíveis

que passam ao lado das caras de pau

que fazem simulando uma visão que não têm.

E nós desfrutamos da festa

na comunhão das promessas de um dos deuses.

Ou viramos as costas a todos

à espera que D. Sebastião

chegue numa manhã de nevoeiro

ou porque preferimos lavar as mãos como Pilatos.

 

 

© Jaime Portela, Junho de 2025


segunda-feira, 16 de junho de 2025

O reino dos céus [620]

 


Feliz quem não quer mais da natureza

do que aquilo que ela lhe dá,

como o camponês,

que vive do instinto e da tradição agrícola,

que se satisfaz com o que o tempo lhe dá

alicerçado na intuição e na dedução.

 

Feliz quem se encanta

na observação da vida alheia,

vivendo um espetáculo virtual,

como o espectador de filmes

que vive da fantasia e, enquanto tal,

esquece a vida real.

 

Feliz quem renuncia a tudo e a quem,

porque a tudo renunciou,

nada se pode roubar,

como o eremita

que foge da vida e, enquanto não morre,

passa o tempo a dormir.

 

Todos abdicam

de parte da sua individualidade e,

porque o fazem, conscientemente ou não,

são mais facilmente felizes.

 

Para não falar dos pobres de espírito,

esses sim, são inconscientes mas felizes,

ou não fosse deles o reino dos céus…

 

 

© Jaime Portela, Junho de 2025


segunda-feira, 9 de junho de 2025

Aprendizagem [619]

 


Quando desvio

o olhar demorado de uma imagem,

recebo a violência do sol na retina.

Magoa-me e queima-me

ver o deslustre e o embuste externo de mim.

 

Escorrego e caio

nos imaginados afetos e apoios

quando os passos dos outros,

dessincronizados dos meus,

me induzem num abismo desprotegido e vão.

 

Ainda vivo,

quase morro na sombra desagradável

de artes emaranhadas

que a próxima aragem dissolverá

e a noite talvez ilumine os seus vestígios.

 

Os contrastes ferem-me,

mas alimentam-me no doloroso calvário

do meu crucificado aprender.

 

 

© Jaime Portela, Junho de 2025