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segunda-feira, 31 de março de 2025

A gente 608]

 


A gente irrepreensível dos gentios

é a beleza espiritual da gente que há.

A pobreza não existe quando todos são pobres

e ninguém peca  quando os atos

com e sem pecado se confundem.

 

A gente irrepreensível dos religiosos

é a beleza espiritual da gente que não há.

A riqueza existe quando há pobres

e há pecado enquanto houver pobreza.

 

A gente irrepreensível do nirvana

é a beleza espiritual de não haver gente.

A pobreza e a riqueza

são castas que não se fundem

num estado a que ninguém chega.

 

 

 

© Jaime Portela, Março de 2025


segunda-feira, 24 de março de 2025

Nunca amamos [607]

 


O amor  é, porventura,

o resultado

de uma longínqua influência religiosa.

 

É uma indumentária tecida pela imaginação

para ornamentar outros seres

em que o nosso pensamento se convence

que o enfeitamento lhes serve.

 

Mas não há roupagens eternas e,

mais cedo ou mais tarde,

debaixo do traje da ideia que fizemos,

que se evapora,

vemos a nudez da realidade do ser humano.

 

O amor, então,

é uma vereda para o desencanto,

que só não o é

se determinarmos mudar de fantasia

a cada passo

para que se atualize a aparência

do ser por nós vestido.

 

Na verdade, nunca amamos,

amamos o conceito que temos de alguém.

 

 

© Jaime Portela, Março de 2025


segunda-feira, 17 de março de 2025

O jogo da vida [606]

 


Num naipe desconhecido,

porque o baralho é descomunal,

somos uma das cartas

cujo valor comparado ignoramos,

a menos que sejamos atletas.

 

A comparação é impossível,

somos quase cegos com dúvidas

e não conhecemos o jogo dos outros

por não sabermos se fazem bluff

ou se dizem a verdade.

 

Vamos, então,

tomando as imagens por realidade

ao ponto de suspeitarmos

se o que somos é uma representação

de uma outra identidade.

 

E é com a incerteza dos trunfos

da ficção que nos acompanha

que o jogo continua de facto,

mas sem prognósticos fiáveis.

 

 

 

 

 

© Jaime Portela, Março de 2025


segunda-feira, 10 de março de 2025

A felicidade [605]

 


Resignação é submissão,

é desistir de querer mais e melhor.

Mas se o vencedor fica conformado

depois da insatisfação que o levou à vitória,

também fica submisso à sua nova condição.

 

Os triunfadores, quando satisfeitos,

perdem os atributos que os impulsionaram

para a tenacidade que lhes deu o sucesso.

 

A satisfação

é apanágio dos conformados

que não têm a fibra do vencedor.

Mas os satisfeitos aparentam ser felizes.

E os insatisfeitos, serão felizes?

 

Será que a felicidade é uma herança

do sangue, da paisagem ou do clima

ou é uma conta feita noutra balança

que por instinto vem ao de cima?

 

 

 

© Jaime Portela, Março de 2025


segunda-feira, 3 de março de 2025

A esperança [604]

 


Sem esperança, há quem diga

que a vida é mais difícil porque é vazia.

Outros há que afirmam

que com ela há uma ilusão

e é um sintoma de impotência.

 

Eu sinto-a como um banal

e estranho panorama

que observo como a um quadro de teatro

de uma novela vulgar, sem meada,

em cena para distrair os sentidos,

ou uma dança sem música de uma brisa

que, com sorte,

apenas faz oscilar arbitrariamente

algumas folhas irrelevantes.

 

Mas, senti-la, é ter alento

para que aconteça o que queremos

quando nada podemos fazer.

 

 

© Jaime Portela, Março de 2025


segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Escrever é deslembrar [603]

 


Para nos afastarmos da vida,

ouvimos, inativos,

música que nos embale.

Outras artes, teatro ou dança,

não nos separam da vida,

são observáveis

e vivem de idêntica humana realidade.

Na cisão que a literatura opera,

a vida é um fingimento,

um romance é uma narrativa

do que não existe

e um poema é a manifestação

de conceitos e emoções

num código em que ninguém se expressa.

Escrever é deslembrar,

é arte e engenho

de um divórcio intencional da realidade.

 

 

 

© Jaime Portela, Fevereiro de 2025


segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Escrever é uma insubmissão [602]

 


Escrever

é esvaziar um lago sempre cheio,

apesar do rio que alimenta

levar até à foz

a água que jamais regressa ao lago.

 

Na escrita há uma embriaguez

feita de essências da mente,

de heroína apanhada nos recônditos

dos escombros da fantasia,

de flores multicolores

colhidas no túmulo das intenções.

 

E há plantas desbragadas

que amotinam os braços

nas bordas impercetíveis

da abundância de ventos do ser.

 

Escrever

é uma insubmissão e um vício,

é uma droga que se venera e consome

num abraço à liberdade.

 

 

 

© Jaime Portela, Fevereiro de 2025


segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Perceções [601]

 


A grandeza da nossa existência

é a perceção que temos dela.

 

Para o camponês,

cujos limitados terrenos lhe são tudo,

as suas terras são um império.

 

Para o latifundiário,

cuja vastidão de terras ainda é insuficiente,

o latifúndio é pequeno.

 

Assim,

o pobre sente ter um império

e o rico precisa de mais.

 

Em rigor,

não temos, não vemos e nem somos

mais que as nossas perceções,

tudo é relativo.

 

 

 

© Jaime Portela, Fevereiro de 2025