Translater

quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Cinzelo uma folha com tinta [191]



Cinzelo uma folha com tinta,
transpiro no fumo, alagado,
e um aroma de selva molhada
chega-me já descorado,
com estranhos sons de um deserto.

E não avisto o desviar da tua blusa.

Mas, se a minha miragem te despe,
subtraio destro a pele das palavras,
sem calcular o logaritmo das somas
e nem sequer a prova dos nove ou real
para traçar os teus códigos secretos.

Porque o poema pode ser celebrado
com tudo que é imortal,
que perece,
branco,
preto,
aos quadradinhos redondos,
enfim, com aquilo que aparece...


© Jaime Portela, Setembro de 2018


quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Flor de sal [190]



Num mar de gaivotas e albatrozes,
enlaçados em maresias de sargaços
num batel à bolina de ventos de feição,
mergulhámos,
despidos,
na emoção da transparência de corais.

E quiseste apertar-me no teu peito
ao som de cílios em desejo,
acesos no querer aportar
ao cais dos meus braços, que acreditaram,
sem ondas, na brisa
que daria vida às velas do nosso abraço.

E quando a noite subia
ao monte de Santa Luzia,
houve sempre um farol,
do Bugio ou da Senhora da Agonia,
a alumiar-nos na espuma e nos recifes
das voltas do vira.

Quero-te,
minha flor de sal,
a navegar ao sabor de ventos e marés
com o teu castelo à vista,
zarpando do quebra-mar da Ribeira
comigo a beber o teu canto de sereia.


© Jaime Portela, Setembro de 2018


quinta-feira, 13 de setembro de 2018

São de pedras os caminhos [189]



São de pedras os caminhos
se o vazio da alma nos persegue.

E é nesse pétreo caminhar
que depressa concluímos
que será sempre melhor
ter alguma coisa por companhia,
mesmo que não acreditemos nela.

E, então,
mesmo não sendo a Pedra Filosofal,
poderemos dizer que mais vale
mal acompanhado que só.

Já que uma razão qualquer,
porventura de pedra lascada feita,
fará dos nossos passos um andar
com pedras temperadas de algodão.


© Jaime Portela, Setembro de 2018


quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Vem [188]



Vem,
que ao chegar sinto vontade de partir,
daqui de longe, para o calor da tua pele,
salgada tez que o nosso mar quer florir.

Voa,
como um pássaro migrante disfarçado,
para o cais onde eu me quero atracar,
sem leme, no teu peito amordaçado.

Procura-me,
que as minhas noites morrem baças, sem glória,
embriagadas na agitação de te amar
à bolina de velame sem memória.

Abraça-me,
repousa em mim a canção do teu olhar,
apaga a fome de beber o meu feitiço,
vê a saudade, já morta, a expirar.

Beija-me,
enquanto enfeito com palavras de flores
todas as vozes caladas no teu corpo
e escuto aromas brotar das tuas dores.

Despe-me,
destapa os meus segredos insondáveis
para eu contar as estrelas dos teus olhos
em madrugadas de suspiros infindáveis.

Despe-te,
sente a tua carne rubra, devagar,
saboreia essa vontade de partir
e de chegar sem intenção de regressar.


© Jaime Portela, Setembro de 2018