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segunda-feira, 25 de março de 2024

NÃO é NÃO? [553]

 


Saídos de um triste beco

da sua existência xenófoba,

despontam radiosos

com palavras chãs de racismo

no rebuço populista.

Os perdigotos,

que deviam ser insolúveis,

acabam por penetrar

nos incautos descontentes

e noutros com fome de poder.

O tráfico fica congestionado

e há cada vez mais troca-tintas

capazes de matar

os vestígios da lógica apregoada.

Então,

os altos interesses da nação

(leia-se, do poder)

poderão metamorfosear

o “não é não”

para o “não é talvez”

e, por fim, para o “não é sim”.

 

© Jaime Portela, Março de 2024


segunda-feira, 18 de março de 2024

O tempo [552]

 


O tempo deveria ser diferente

e não caminhar sempre em frente

sem olhar para onde vai.

Poderia ter curvas e contracurvas

e até marcha atrás de vez em quando.

Também gostaria

que as noites não fossem escuras

e que tivessem sempre a lua cheia

com o triplo da luz

(o que se poupava em iluminação pública).

Seria bom, também,

que as guerras fossem proibidas,

que ninguém passasse fome nem frio

e que a verdade fosse a única opção.

Mas a vida segue o seu curso

e sabe a sonho e a pedra,

a ternura e a desamor,

a sucesso e a desgraça,

a esperança e a desespero,

a paz e a guerra.

O tempo arrasta-nos,

empurra-nos,

ilude-nos

e alaga-nos em remoinhos de lodo.

Envelhece-nos e mata-nos a todos.

 

© Jaime Portela, Março de 2024


segunda-feira, 11 de março de 2024

Cartas de amor [551]

 


O balde está quase cheio e o cheiro,

nauseabundo,

dorme na minha insónia como se fosse uma faca

a perfurar-me os miolos.

Ontem sujei os dedos e não havia jornal.

Limpei-os à parede.

Não tinha alternativa,

queria escrever-te com as mãos limpas,

mas levei dois pontapés

para aprender a ser limpo e educado.

Hoje deviam louvar-me,

despejei o balde para o chão, civilizadamente,

e enfiei-o na minha cabeça.

Perceberam a mensagem,

levaram-me ao psicólogo

e respirei ar quase puro durante uma hora

a explicar-lhe que eu era um preso político.

De volta à cela, passei ao nível 2:

despejei o balde em cima do guarda.

Depois disso,

fiquei sem mais vidas para gastar:

acorrentaram-me, sem balde, na solitária,

e apreenderam as nossas cartas de amor.

 

© Jaime Portela, Março de 2024


segunda-feira, 4 de março de 2024

Eram prenúncios de céu [550]

 


Eram prenúncios de céu

os mistérios que me chegavam

envoltos em nevoeiros a esconder

o teu exato desígnio amuralhado.

Vidente,

percebi nos teus dissimulados gestos

o contrário da indiferença,

rompi o nevoeiro

e demoli a muralha,

que afinal eram tão frágeis.

Agora que te vejo claramente,

conheço o teu sangue,

o teu âmago

e todas as vias

onde podemos alargar sem mistérios

os nossos supremos voos até ao céu.

Lá no alto,

vou largar-te  e vais cair desamparada

porque sou um predador de um só voo.

 

© Jaime Portela, Março de 2024