Translater

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Na procura [545]

 


Na procura da volúpia

e de momentos cálidos

nas imersões no teu rio,

enganei-me, a sensação foi gelada,

de arrepios.

 

Sei que era onde habitavas,

desde sempre,

só não sei por que razão

procurei o polo norte

que tinhas dentro de ti.

 

Mas não me lamento,

porque o espanto faz parte

do universo do impensado

e só é um grande atropelo

para os que bem organizam a vida.

 

© Jaime Portela, Janeiro de 2024


segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Amor de perdição [544]

 


É um néctar

o perfume que anima a tua casta

e que ornamenta a tua alma.

Saboreio-te

para melhor ver as estrelas

ou o rio que serpenteia

por entre os socalcos do vale.

És sumo quase proibido de um fruto

que bebo para sentir

todos os segredos de que preciso

para cair e escrever sem me magoar.

Se eu fosse um Deus,

construía-te uma cidade

como a que fizeram para Afrodite.

Mas o teu Deus, não,

Baco tentou impedir

a chegada das caravelas à Índia

e o rubor etílico dos marinheiros

é prova disso.

Verde ou maduro,

branco ou tinto,

tanto faz, és um amor de perdição

desde que nasceste

na oferenda da fermentação.

 

© Jaime Portela, Janeiro de 2024

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

A imaginação [543]

 


A imaginação é uma densa floresta

onde as histórias se multiplicam

no seu útero

e onde dormem e acordam

os poemas que nutrem e revelam as raízes,

os troncos, os ramos e os frutos da vida.

 

A imaginação, de olhar atento,

tece cenários e trovas

em que a renovação é sentida

como se a vida fosse um filme

onde as cores e as emoções nunca cessam.

 

Sem ela,

há um deserto de palavras perdidas

que morrem de sede

em searas queimadas

e os filmes são cegos, surdos e mudos

de imagens e sons.

 

Imaginação,

sorriso de ave a vestir-se de palavras

num avião das alturas.

 

Mas, sem sabedoria, é árvore sem água

que só dá frutos mirrados por acaso.

 

© Jaime Portela, Janeiro de 2024

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Lá vai uma [542]

 


Lá vai uma, lá vão duas

e mais mil banalidades.

É chuva a cair e a molhar-nos

sem podermos fugir.

Nada se torna simples.

Nada mesmo nada é tangível.

Mesmo que seja duas vezes dois,

não é factual

e é possivelmente irreal.

Tudo é especulado.

O seu contrário também

e é dizível com o despudor de criança.

Com os seus olhares soberanos,

procuram guiar-nos

como se fôssemos cegos.

Há exceções, que confirmam a regra.

De contrário, não guardava a faca

para barrar o pão com manteiga.

 

© Jaime Portela, Janeiro de 2024


terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Colchão de pedra [541]

 


Havia mil catedrais

que subiam ao céu nos teus lábios

e, ao longe, telas de Dali

iluminadas pelos teus olhos.

 

Havia mil canecas de Bordalo

a desatar as mãos

e a razão era um quarto vazio

que se perdia a cada beijo.

 

Havia mil comboios

a gemer de vapor

a empurrar-nos para fora dos carris,

mas o som

era uma sinfonia de Beethoven.

 

Mas já não há telas,

catedrais, canecas, comboios

ou nona sinfonia que me valha,

ficou apenas um arranha-céus de vazios

de onde me atiro

para o meu colchão de pedra da tortura.

 

© Jaime Portela, Janeiro de 2024