Translater

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Do nosso muro de Berlim [195]



Quando partimos,
a solidão fica maior do que pensávamos
e sofremos com a saudade
sem a sabermos pintar com palavras.
Apenas sentimos que ela mora trasvestida
no silêncio do corpo, golpeado de passados
que se avivam, que revolvemos nas insónias
pejadas de perguntas idiotas.

Mas sabemos que, no regresso, ouviremos
estrondos de grilhetas rebentadas
na libertação do escravo
que prendemos dentro de nós.
E que, na reconstrução, voltamos a ser
pedra sobre pedra, matando a sede,
destruindo fraquezas
infiltradas nos ossos das convicções.

E que, ao colocarmos flores
na barricada que nos protege,
somos de novo czares ou czarinas
sem proletariado ou histeria nazi.
Renascemos com a queda
do nosso muro de Berlim e, da ausência,
não haverá mais arame farpado na mente.


© Jaime Portela, Outubro de 2018


quinta-feira, 18 de outubro de 2018

A uma prostituta [194]



Não quero o teu corpo comprado
numa cama limpa, sem vida, sem beijos.
Do teu sangue, não sentiria a desordem,
apenas o ruído equivalente.
Nem da tua carne beberia a sede
ou o galope de corcel desenfreado.

Serias virgem em chamas simuladas
não ateadas pelo meu fogo real.
Serias atriz cronometrada
enquanto eu,
artista principal,
te possuía com um papel secundário.

Tal como tu,
não te quero. Nem te conheço...
E, mesmo assim, eu gosto de ti.
Eu sei, não podes ser diferente.
Nem serias prostituta
com tanto homem na mente…


© Jaime Portela, Outubro de 2018


quinta-feira, 11 de outubro de 2018

Nos lençóis em desalinho [193]



Surgiste a noite passada,
ave noturna,
de mansinho,
ignorámos a madrugada
nos lençóis em desalinho.

Encontrando-te,
perdi-me num vulcão,
fervente, em cadinho,
templo ao desejo erguido
nos lençóis em desalinho.

De rios bravos a lagos,
fomos pão,
fomos vinho,
fomos água,
colhemos um mar de rosas
nos lençóis em desalinho.


© Jaime Portela, Outubro de 2018


quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Fantasia de sal [192]



O mar,
um cão (nós ouvimo-lo a morder),
encheu-te os ouvidos de búzios
no teu corpo de sargaço em desordem,
para que ouças
as carpideiras nos salpicos de mar
e sintas
o naufrágio da tua fantasia de sal
ao largo de um cabedelo tinto de luar.

Entregas-te mulher no calor das dunas,
onde te sonho no sonho que amanheço,
perdes-te nas vagas em pranto
que o mar derrama
pelo regresso impossível ao começo.

Mas eu cinjo-te num abraço,
alago-te de um mar chão de ruídos,
torno-te lua
de coração espelhado a incendiar a noite,
onde te vejo nua,
tremelicando no espelho de sal e areia.

Abres os olhos
e sonhas-te a caminhar na areia da praia
a esboçar trilhos
ainda virgens de sal nas escolhas.


© Jaime Portela, Outubro de 2018