Translater

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Por ti [307]

 


Por ti, eu corto os pulsos aos dias

e, das noites, arranco devoto as raízes,

para que mentiras ou verdades

sejam profanos cantos de vida,

mas do pecado absolvidos.

 

Por ti, sou capaz de me ofertar

em prodígios de pão e de vinho,

de te despir sem macular o sacrário

e de afastar o desapego

desses verdes olhos sem cor.

 

Por ti, posso agarrar o sol, inteiro,

para enxugar do teu corpo a dor,

do teu sorriso posso romper a prisão

e beber o grito libertário

no cume festivo do êxtase partilhado.

 

Por ti, em qualquer caso, serei

chuva benfazeja ou sopro milagroso

das feridas malfeitoras do teu peito.



© Jaime Portela, Novembro de 2020


quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Trôpegos [306]

 

Trôpegos, caminhamos dúbios a rezar

por um céu mais limpo e luzente,

somos medíocres infalíveis

a promover mediocridades

ou andamos de rastos

na secura do martírio transpirado

em desalento coletivo.

A postura, num modo desviante

e desgraçado em tempos traiçoeiros,

porque ficamos focados

nas consequências da noite

à luz de faróis invertidos

que não iluminam as causas,

dobra-nos a convicção pela espinha

e não rompe o manto escuro

que nos ata a crescença.

Humanos, somos gente descuidada

sem estrela nem rumo, que se lamenta

e não se governa no barro da hipocrisia

onde alegremente fervilha,

nem se deixa governar no lamaçal

que sem o sentir o perfilha.



© Jaime Portela, Novembro de 2020


quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Escrevo-te [305]

 

Escrevo-te

no meio de uma linha de montagem

de pássaros felizes, que das palavras

se perfumam apressados na tua direcção,

enquanto me penso percebido

pela árvore do teu sentir

e onde pousam com este canto nas asas.

 

Serás minha confidente se devolveres

os pássaros anilhados com palavras tuas,

sublinhadas pela mão que olha de frente

e agarra consistente as emoções.

 

Serás minha amante se vieres até mim

montada nos pássaros, pela urgência de ouvir

a tua própria alma, apregoando palavras

a calar o teu silêncio de laços por abrir.

 

Serás minha confidente

se o teu corpo não se acrescentar ao meu

nas asas do desejo.

Serás minha amante

se fores lava enquanto me beijas

rubra na aventura incerta da nascente.

 

Serás minha

se as tuas cartas tiverem o selo do amor

com o carimbo da paixão.



© Jaime Portela, Novembro de 2020


quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Parece que foi ontem [304]

 

Parece que foi ontem

que nos vestíamos de fogo

para transpormos riachos

sem nos molharmos por dentro.

Ficávamos de pele encharcada e,

com a boca na brisa que em nós rebentava,

despíamo-nos ao sol

para colher o silêncio das flores

no ventre da vida.

 

Parece que foi ontem

que pintámos o estio na alma

para profanarmos os nossos segredos

em rios de margens intangíveis.

E, de cada vez

que o desejo se imprimia na carne,

a cor dilatava-se

em pinceladas de sussurros,

plasmados ao corpo em delírio.

 

Parece que foi ontem

que me deixaste

ao sabor da procura dos teus beijos,

perdido no caruncho da saudade

com a pele de um mendigo

de corpo e alma perdido,

sufocando à míngua da tua brisa,

morrendo só, na memória do teu fogo.



© Jaime Portela, Novembro de 2020