Entre as leiras da Areosa
e o pacato rio Lima,
entalado pelo mar
contra o Campo da Senhora da Agonia,
com a descurada visão de Santa Luzia,
o trabalho era porco, pesado e perigoso.
Mas saíam navios pela barra
como filhos ingratos que jamais regressariam
à casa onde deixavam os pais,
alguns mortos e muitos vivos.
Houve o tempo, já esquecido,
dos rebites cravados a fogo de carvão.
O tempo da escravatura dos balões
que mandavam operários para casa
de mãos a abanar
sempre que chovia ou o trabalho diminuísse.
Houve o tempo do traçado das curvas do navio
desempoladas de joelhos com virotes,
como quem reza,
até que os computadores pusessem fim
a tão sacrificial religião.
Houve o tempo da surdez por tanto ruído
e das doenças dos pulmões,
até que surgissem máscaras e tampões.
Houve o tempo do trabalho descalço
e das quedas dos andaimes geringonças,
até que chegasse calçado seguro
e andaimes sem pranchas já podres.
Resistimos à loucura de patrões
e à dança de cadeiras mancas
que a revolução pariu.
Resistimos à queda do Escudo
porque fomos salvos pela queda do Escudo.
Até esperamos por Godot,
mas nem Beckett nos ouviu,
não resistimos à inaptidão infantil da gestão
nem ao malandro arbítrio do poder.
© Jaime Portela, Setembro de 2024
*ENVC – Estaleiros Navais de Viana do Castelo
– dedicava-se à construção e reparação navais. Há cerca de 10 anos, foram
despedidos todos os seus trabalhadores (mais de 600). Venderam os equipamentos
a uma empresa que iniciou a mesma atividade pagando um aluguer mensal quase
simbólico ao Estado (proprietário do terreno).
Da queda do Escudo (moeda
portuguesa da altura): um contrato de 1972 ou 1973, para 2 navios químicos com
cerca de 180 metros de comprimento, foi feito em Escudos, que começou a
desvalorizar-se logo de seguida. Foi um desastre, o dinheiro recebido para os 2
navios foi necessário quase todo para o primeiro. O prejuízo levaria à falência
se não fosse a nacionalização da empresa. Meia dúzia de anos mais tarde, foi
assinado um contrato em dólares para 2 navios para o Brasil de dimensão
idêntica. E como o Escudo continuava a desvalorizar os lucros foram enormes (1
dólar, de 40$00 no início, estava a 140$00 no final).