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terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Terá sido [540]

 


Terá sido

a vertigem do nosso inverno enganado

que fez com que os rios

tivessem saído das margens

e as gaivotas sem norte

se detivessem esfomeadas

na ilha dos amores.

 

Terá sido

o frio da ilusão primaveril

que matou as ramagens mais audazes

ou que os tempos em que fomos meninos

na perceção de verão

nos fez perder na colheita abandonada.

 

Terá sido

algo que tenha sido terra de outras sementes

ou que o vinho novo e quente

nos tenha enevoado a chama e a razão

para que não te tenhas doado desfalecida

de olhos fechados na entrega.

 

Não sei, ao certo,

o que terá sido,

mas sei que na próxima vida

serei Plutão a raptar-te como deusa Libera,

comerás um bago de romã

e voarás nos meus braços

numa vertigem de saudade.

 


© Jaime Portela, Dezembro de 2023


segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

A incerteza do agnóstico [539]

 


A sua construção é mística

e os mistérios adensam-se como cogumelos

em florestas bíblicas intermináveis.

Se existe,

estamos nas suas mãos.

De contrário, só neste mundo encontraremos

quem nos condene ou liberte,

quem nos arraste ou levante,

quem nos empurre ou ampare.

 

Mas há que haver alguém

que esvazie os pecados que inundam a Terra,

que não lave a mentira e castigue,

que force os ladrões a devolver o que roubam.

Porque a bem-aventurança

deve chegar antes do Céu, se ele existir.

É para ela que devíamos ter nascido,

mas a subsistência na blandícia do cómodo

atira às malvas a sevícia da dúvida.

 

Criamos heróis para que nos acudam

e a vida sabe-nos a pouco.

Se no princípio era o verbo,

no fim será o eterno.

Por que temos de acreditar sem ver?

Teremos sido nós os criadores?

 

© Jaime Portela, Dezembro de 2023


segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

A morrer dentro de ti [538]

 


Enleado,

vivo na água que morre

a beijar meus pés descalços,

sou a sede que entardece

na baixa-mar de sargaço

que ao sol se vai mirrando.

 

Fascinado,

ouço todo o mar

que ensurdece dentro de um búzio,

tenho os teus seios colados

à pele areada com o sal

que nos contagia embriagados.

 

Derrotado,

fujo para o lugar de onde parti,

és a planície verdejante

dos vales que vão deslizando

sob o meu corpo

a morrer dentro de ti.

 

© Jaime Portela, Dezembro de 2023


segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

O poema [537]

 


O poema,

onde se apoiam as coisas do espírito

que se entrelaçam no pensamento,

é o reviver dos teus mistérios.

 

O poema,

onde renasce a tua essência,

é o lento amanhecer de frutos novos,

arranjo floral de vozes

e desassossegos noturnos.

 

O poema,

sem o teu olhar vibrante, não seria

a vontade pontiaguda nas entranhas

à procura da palavra

onde me deito e levanto.

 

© Jaime Portela, Dezembro de 2023