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quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Ainda posso [187]



Ainda criança,
queria sentir
o mesmo que as outras crianças,
que tinham um manancial de sonhos
melhores que os meus.

Ainda inocente,
queria acreditar
nas costureiras
que bordavam as asas dos anjos
na verdade do cosmos.

Ainda puro,
queria beber
os dias sem mágoas,
num faz de conta igual
ao dos filhos sempre felizes.

E ainda hoje queria...
Mas ainda posso,
mesmo velho,
comprometido e encardido.


© Jaime Portela, Agosto de 2018


quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Podemos [186]



Podemos pensar
que caminhamos livres,
distantes de uma chama passageira.
Podemos ver-nos
Ítalo e Odalisca de um bordel,
deitados num saque de conquistas
e abraçados a capitulações ponderadas
de um império florescente.
Podemos até julgar
que tudo é inflamado, aparente,
onde o triunfo é geral
sem nada de surpreendente.
Podemos...
Mas também podemos navegar
nos escolhos da ternura,
de olhares perdidos,
encontrados num fogo reverente.
E podemos ainda
ancorar o vaso e o fluido decifrados,
num mar chão só com corais
de água limpa e transparente.


© Jaime Portela, Agosto de 2018


quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Para não ficar calado [185]



Escrevo
como um pássaro que voa
sem motivo aparente,
livre como o vento
e à custa do vento.

Escrevo
sem precisar de falar a verdade,
sem me servir da mentira,
recorrendo à ficção ou à realidade,
a todas elas
ou ao seu contrário.

Escrevo
palavras que correm
de mãos dadas ou às avessas,
embaladas quase sempre
em doses ponderadas
ou desmedidas,
sem escola nem guião.

Escrevo sempre
sem razão convencido da razão,
muito ou só um bocado.
E quase sempre,
ou mesmo sempre,
para não ficar calado.


© Jaime Portela, Agosto de 2018


quinta-feira, 9 de agosto de 2018

O meu cão [184]



Despiste as vestes do passado
para trajar o futuro da vontade fugaz.
Ficaste assexuada
no vazio de emoções quando a paixão
já não te rasgava as entranhas.

Sangraste, exauriste até à gota derradeira
a tua seiva aturdida
na transfusão ininterrupta de caminhos
cada vez mais destroçados.

Emudeceste, ensurdeceste,
para que os nossos tímpanos
continuassem virgens ao engenho das palavras.

Trocaste a tua pele de tatuagens genuínas
pela aparência maquilhada
de uma boneca de pilhas.

Abandonaste braços, mãos, pernas e olhos
para que eu não algemasse a tua fuga para a cegueira.

Amputaste neurónios, pensamentos e verdades
no desassossego de madrugadas vazias de sentido.

Atiraste para a lixeira
o que restava do teu corpo enlouquecido,
sem perceberes que a sua reciclagem era impossível.

Suicidaste-te para que nada mais te pedisse.
Enterrei-te, bem fundo,
a cadeado no meu paiol da indiferença,
para que o meu cão não te desenterrasse
e morresse envenenado
ao trazer-te de novo para mim.

Enterrei-me
à mesma profundidade que tu, a teu lado,
morri envenenado ao enganar o meu cão
quando voltaste para mim.

 



© Jaime Portela, Agosto de 2018


quinta-feira, 2 de agosto de 2018

Surgiste [183]



Surgiste
de sorriso livre de promessas
com as têmporas fascinadas
na claridade de uma fogueira
virgem no corpo.
Através de um periscópio distraído,
mas emerso,
vi-te a naufragar sem amparo,
exausta, a embalar sonhos sem olhos
num mar perpetuamente bravio.
Lancei-te boia e retenida
e mostraste-me o vento seco e frio
a trincar os teus pés descalços,
verdes pela ausência de beijos
mas delicados pela brancura da espera.
Deste-me o trigo do ser
penteado em madrugadas ao vento,
sonhos de liberdade
na seara por ti engalanada
com espigas de certezas.
Resta sabermos depurar o desejo,
o sumo e o resumo da vida,
ainda que a ampulheta
continue a vazar o tempo na areia.



© Jaime Portela, Agosto de 2018