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quinta-feira, 30 de junho de 2022

Caravela dourada [414]

 


A tua fronte
é uma caravela dourada
de velas enfunadas pelo fogo tropical.
Loucas,
as brisas naufragam
nas ondas fulgentes do mar,
os teus cabelos,
que não escondem

a força que sai do teu olhar,
onde me chego, a bebê-lo,
quando beijo o teu sorriso.
Aberto,
o meu respirar é um abrigo
que te cinge na praia
coberta de vestes distraídas,
as nossas, que não tolhem
o bando de carícias em crescendo
quando pousamos
nas asas da ternura.
Irrepetível,
é o tempo na demora dos teus braços,

que procuro, maquinal,

para embarcar
pela janela da tua caravela dourada.

 

© Jaime Portela, Junho de 2022


segunda-feira, 27 de junho de 2022

Por onde entrou a tua essência [413]

 


Por onde entrou a tua essência
se para alojar um anjo que fosse
nunca me nasceram ideias?
Como coubeste num lugar inexistente,
se nem sequer uma unha
a quebrar-se de carência me assaltava,
mesmo quando os teus olhos

se prendiam soltos nas palavras de fome

que me libertavam numa prisão de papel?
Que me lembre, as portas estavam fechadas
e não havia janela ou chaminé
viradas para a tua ausência.
E eu não desvendei porto nem cais
onde pudesse atracar um navio sequer.
Certo é que dei contigo à viola das palavras
de lume crepitante nos olhos,
a voar nos meus relógios
e à lareira de uma alvorada de ponteiros,
onde adormecemos à espera de um milagre.
Agora, o temor da tua ausência

quando te vejo numa estrada sombria a caminhar

agarrada ao intestino amargo da tristeza,
é uma nuvem de pesadelos mudos
colada às rugas inquietas do meu cérebro.
Será que tudo isto é um disparate?
Um embaraço de segredos em silêncio?
Acho que não, disparate é fugir

e morrer da cura na certeza terminante.

 

© Jaime Portela, Junho de 2022


quinta-feira, 23 de junho de 2022

Sou um tumulto [412]

 


Sou um tumulto
confinado pelas fronteiras
à volta de uma pilha revolta de ideias
que procuram atravessá-las
por todos os caminhos possíveis.
Mas é a quietude do meu ser
que tenta organizar o meu estar
para que toda a energia,
que internamente se agita,
não me transcenda,
não fragmente a minha existência
e não me projete como um foguete
que morre fátuo em fumo e cinza,
ruído sem impacto duradouro no silêncio.
E há sempre algo
que destrói a incerteza dos desejos,
que me arremessa na vontade
de não estranhar que o destino
se revele como a surpresa do poema.

 

© Jaime Portela, Junho de 2022


segunda-feira, 20 de junho de 2022

Gostava de saber [411]

 


Gostava de saber se olhas a lua

e as aves nos dias amargos,
se acreditas na incerteza do amanhã e
se depositas nas cartas da sorte
o desfecho dos teus sonhos.
Gostava de saber se nas noites vivas
deixas que o teu desassossego
mate o rio farto de um corpo
que te pede a exaltação e se dormes
serenamente de alma acolchoada.
Gostava de saber se abres as mãos

aos momentos, se o meu nome acende
a tua mente de perna traçada e
se não há quem te levante se te deitas
a premiar o teu corpo de linho.
Gostava de saber tudo isso porque
temo que saias tarde ao encontro de ti,
que descures a calidez da primavera

dos teus olhos e, por medo, caminhes

longe da vista do lado visível do amor.
Gostava de o saber da tua boca, porque,
já o sabendo, gostava que o soubesses.

 

© Jaime Portela, Junho de 2022


quinta-feira, 16 de junho de 2022

Do cume do monte mais alto [410]

 


Do cume do monte mais alto
nada avistei de suspeito
para cá das gaivotas que espiam o mar.

Nem sequer uma sombra furtiva
de olhares enforcados ao sol
nos ramos queimados da mata.

Nem sequer um navio arqueado
de velas adultas ou remos sedentos
nas águas compridas do mar.

Se daqui para longe voarmos

nas asas do vento que passa,
nem uma nuvem por isso dará.

Sou um pássaro da cor do céu,
pronto a voar no desejo
que as nossas mãos não encolhem.

E até sou capaz de ir contigo
ao ponto supremo e perigoso
do cume do monte mais alto.

 

© Jaime Portela, Junho de 2022


segunda-feira, 13 de junho de 2022

Se nada for feito [409]

 


Recuamos à força dos mísseis

e temos o bem-estar da paz

aguilhoado até à exaustão.
Há ferrões que nos espetam
e em cada pele se respira

a certeza da mentira a oriente
mais a traição de irmãos.
Somos esmagados
até ficarmos destruídos
para glória de ninguém.
O povo é repatriado
não se sabe para onde,
perdemos os nossos mortos
e, se nada for feito,

teremos de aprender que somos

mais um povo sem terra

e o que resta da nação ucraniana.

 

© Jaime Portela, Junho de 2022


quinta-feira, 9 de junho de 2022

Seria bom [408]

 


Seria bom
percebermos alguma coisa de finanças,
mas com isso não evitaríamos
que alguns bancos falissem.

Seria bom
compreendermos melhor o trabalho,
mas com isso não impediríamos
que tantas empresas fechassem.

Seria bom
distribuirmos um pouco mais o amor,
e com isso evitaríamos
que os loucos nos dessem a guerra.

 

© Jaime Portela, Junho de 2022


segunda-feira, 6 de junho de 2022

Andorinha de inverno [407]

 


Quando o meu dia esmorece
e se afunda num lamento
de cidade embaraçada,
o teu olhar é uma ave
que me abraça e fortalece
no poente que da vida se alimenta.

Que brilho de andorinha
nos meus olhos levaria
se na despedida voasses
e nos lábios me calasses o adeus
com a maviosidade das asas
da ternura de mulher abençoada.

Que alma arrematada
no meu sangue vibraria
se no meu ombro pousasses
e ao ouvido me adormecesses o pranto
com requebros bailarinos de andorinha
na graça adolescente de mulher apaixonada.

Assim aconchegado, jamais eu morreria,
minha andorinha de Inverno.

 

© Jaime Portela, Junho de 2022


quinta-feira, 2 de junho de 2022

Prosápias [406]

 


Sobrevivemos numa rima miserável
de vontades recheadas de coisas movediças
que resvalam como lava
por caminhos aleatórios de enxurrada.
Sendo as torrentes
inversamente proporcionais
ao saber e à bondade,
o que nos define como grupo
são os pontos em comum,
criando raízes em certos sítios da ladeira,
mais ou menos próximos
do cume ou do sopé.
Só que, vistos de fora,
somos um agrupamento de um só carácter
muito perto da derrota, no sopé,
sabendo-se que essa visão
tanto abarca o seu contrário como a sua mediana.
Mas eles, os de fora,
andam redondamente enganados
porque somos bons em tudo.

Estamos no topo,
desde que não nos obriguem prová-lo.
E somos felizes com o sonho
das vontades por cumprir, prosápias já seculares.

 

© Jaime Portela, Junho de 2022