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quinta-feira, 31 de março de 2022

Tenho as mãos enterradas [388]

 


Tenho as mãos enterradas

no som minado da palavra,
onde cultivo o vírus da ausência
e onde faço um caminho falho
para transpor o tempo e o espaço
que me separam de ti.

Os cortes do vidro moído

gritam em silêncio
e não há descanso dentro de mim,
rasgo o espaço onde me faltas
e não desfaço os sinais em desatino
na cata cega do acerto.

Recolho os cacos
no avesso da síntese da realidade
sem jamais os conseguir colar e, com eles,
esboçar flores consertadas
que atapetassem o caminho
por onde virias descalça até mim.

Vou tentando,
mas estas mãos só resistem
pelas palavras, que vão morrendo
lentamente com a falta das tuas.

 

© Jaime Portela, Março de 2022


segunda-feira, 28 de março de 2022

Este é o meu corpo [387]

 


Ele disse:
“E no princípio era o verbo”.
Se não sabes o que diz a ideia,
não tens de convencer o enunciado
a renascer aos teus olhos
e muito menos de te exasperar
na revelação do enigma.
Ajoelha-te,
protesta contigo numa prece,
esquece o mistério do princípio
e salta para a incerteza do fim.
Sabes para que serve a tua alma
e qual o seu destino?
Se isso também não sabes,
desiste e concentra-te no meio,
que é o teu corpo.
Faz orelhas moucas
à sístole e à diástole da palavra
e diz alto e bom som:
“Este é o meu corpo
e o verbo está dentro de mim”.

 

© Jaime Portela, Março de 2022


quinta-feira, 24 de março de 2022

Não quero perder [386]

 


Não quero perder
o chão que respiro contigo,
porque não há outro.
Faz um bordado atraente
na tua blusa,
tapando os presságios do abismo
que a tua dor atrai.
Compreenderei os sinais
e acrescentarei
um laço garrido ao teu olhar.
De contrário,
para que sobrevivas,
cairei antes de ti no teu abismo.

 

© Jaime Portela, Março de 2022


segunda-feira, 21 de março de 2022

Putincracia ou morte [385]

 


Estando todos contra mim,

que é o mesmo que estar contra o meu povo,

descobri que sou um profícuo tecelão

da trama em que me enredo e desvendo.

Arrogo-me

no direito do pastor que conduz o seu rebanho

e mando colocar atrás das grades da reprovação

quem  se manifesta contra a guerra,

que não é guerra,

como se houvesse liberdade para tal.

Persisto, contra tudo e contra todos,

no disseminar da palavra e da granada.

Sou justo, seguro e infalível

no teatro de combate, que não é guerra,

apesar dos mísseis e das bombas

que caem nos hospitais,

apesar das crianças

que morrem antes de serem libertadas.

Porque na minha arte sou o melhor,

resisto e insisto com tiros de palavras justas.

Porque errados, estão todos.

Eu sou o único certo.

Sou o Criador do meu Império,

sou descendente legítimo dos Czares,

sou o senhor da solução final.

Por isso, eu digo: Putincracia ou morte.

 

© Jaime Portela, Março de 2022


quinta-feira, 17 de março de 2022

As palavras nascem já mortas [384]

 


As palavras nascem já mortas

por despir e amar

a tua presença viva

submersa no bálsamo dos sentidos.

És a floresta

de onde sorvo a resina

para as imagens que desenho no teto,

frescos para a quimioterapia do sangue.

És uma amante entranhada,

paciente,

a videira rupestre do meu sangue e,

do meu verbo,

a embriaguez da origem.

E é a luzir, mutuamente,

que nos entregamos, inteiros,

à luxúria de pirilampos da vida.

 

© Jaime Portela, Março de 2022


segunda-feira, 14 de março de 2022

O equinócio da Primavera nos teus olhos [383]

 


É frequente dar comigo

entre o festim de chamas

no limite do teu corpo

e os vestígios plasmados

que ainda restam de ti

na pele da concórdia matinal.

Visto-me de uma insónia

tão curvilínea como os teus seios

e de uma dormência tão perfeita

como a ternura das carícias

que os teus dedos me fazem no cabelo.

Enquanto dormes,

fujo para dentro de mim

e consigo ver o equinócio da primavera

nos teus olhos.

 

© Jaime Portela, Março de 2022


quinta-feira, 10 de março de 2022

Se não sabes escrever nas paredes [382]

 


Se não sabes escrever nas paredes
com as sombras das árvores
que tens no estômago, é porque

as nuvens que te passam por dentro
trespassam a defesa franzina
que te protege de ti.

Se ainda há flores na mente

do chão que tens nas pernas da boca,
que mentem ao fechares os olhos
às imagens a correr
quando paradas no teu corpo molhado,
não podes fechar a sete chaves
os espelhos debaixo dos braços.

Porque as palavras sem texto,
na pele macia que beijo da mente,
boca, pernas e braços,
agarro-as de olhos fechados
na procura dos teus seios,
vaivém de pássaros sem asas
de penas quebradas coladas a ti.

Vamos desemplumar a nudez da forma

sem nuvens no estômago
e eu desvendo-te o caminho,
mostrando-te à sombra das paredes
o que te escrevo nas árvores
e na rosa que acendes nas mãos.

© Jaime Portela, Março de 2022


segunda-feira, 7 de março de 2022

Seara de girassóis [381]

 


És seara de girassóis

a olhar o sol dentro do meu peito,

esperança onde navego infante

no alvoroço do teu porto de abrigo,

sereia embriagante

à qual não consigo chegar

na inquietante secura de ti.

Sempre que te sinto,

tenho este desassossego roído,

em migalhas, uma angústia letal

bebida aos golos da omissão de pólen

no gineceu da vontade.

Sou o abatimento

de olhar suspenso na tua seara,

pois nem sei se me esperas

de corolas abertas viradas ao sol.

 

© Jaime Portela, Março de 2022


quinta-feira, 3 de março de 2022

Ofertório [380]

 


Lânguida, a tua mão acaricia-te

no silêncio branco da noite.

Pegas em sonhos ávidos

e adoças na boca o sabor quente a canela

que mascas na passarela do enlevo.

Percorres-te debaixo da pele

e, de ti, conquistas o céu.

Incandescente, sorves a polpa despida,

sonhada e roliça,

tal como as raízes procuram a água.

Ofereces-te num altar

em fragmentos de seiva

e és total em cada parte.

Depois, mansamente, guardas

os bem-me-queres no sacrário da mente

até que rebentem de novo.

 

© Jaime Portela, Março de 2022