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quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Outro Natal [256]




Outro Natal e eu quase santo
porque o céu
é o limite para as asas do poeta.

Com tantos delitos, porém,
que se cada um pesasse um grama
eu dobraria pelos joelhos.

Mas sei que sou perdoado
porque sou humano
e, embora nada compreenda,
talvez por falta de fé, sou inocente.

E vivo na ingénua certeza da criança
que espera deslumbrada o Pai Natal
e do Menino Jesus deslembrada.


© Jaime Portela, Dezembro de 2019


quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Do Diabo e de Godot [255]




“Não há dinheiro!
Qual destas três palavras não percebem?”
Deixámos de clamar por um emprego
porque não eram empregadores,
por subsídios, porque não eram um banco.
Gentinha gastadora que não percebia
que era a hora certa de emigrar…
“Não há dinheiro!
Qual destas três palavras não percebem?”
Só um louco pensava
que os direitos seriam eternos
já que investiram muito dinheiro
para nos mandar parar
de pescar,
de agricultar,
de industriar…
E procurámos trabalho lá fora
como fizeram os nossos avós.
 “Não há dinheiro!
Qual destas três palavras não percebem?”
Desempregados, não os queriam cá,
cambada pobre do juízo e da carteira
com sonhos excêntricos de reforma.
Que fugíssemos enquanto era tempo,
porque a fábrica de pobres
ainda não chegara ao fim.
“Não há dinheiro!
Qual destas três palavras não percebem?”
Percebemos e mandámo-los embora.
Afinal nunca houve dinheiro
desde o ouro do Brasil.
Mas não ficámos à espera do Diabo
como os dois velhos de Godot…


© Jaime Portela, Dezembro de 2019


quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Como agnóstico [254]



Como agnóstico,
sou um desamparado.
Nunca fui capaz
de acreditar em deuses
e livro-me racionalmente dos espinhos
com a pinça da fé nas palavras,
apesar da fantasia do alívio.
A esperança de vida,
uma indulgência
de ave camuflada no bando
a escapar às de rapina,
é uma tábua de salvação
cada vez mais carcomida.
E chega a ser um sossego aceitável
não ter sossego algum.


© Jaime Portela, Dezembro de 2019


quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

O peso dos sonhos [253]



Terão sido as visões,
que assimilámos de tanto observar
as aves a voarem sem medo,
que nos mostraram
o peso dos sonhos.
Com a pedra lascada
e com o sílex na ponta de um pau,
sonhámos com a recompensa neolítica
do coelho que nos fugia
e com a leveza de um corpo com asas.
Agora,
continuamos a sonhar,
mas com o porvir da mudança
e com a dilatação das margens dos rios
que nos correm por dentro.
Mais tarde,
pesaremos o resultado dos sonhos e,
só então, veremos se fomos capazes
de apanhar muitos coelhos
e de voar sem medo como os pássaros.


© Jaime Portela, Dezembro de 2019


quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Mares encapelados e mansos [252]



Há muita coisa que nos ficaria entranhada
se deixássemos de nos beijar.
A pele de galinha seria uma saudade
encarquilhada pela pátina do tempo,
saudade eternamente verde, não de esperança,
mas porque jamais morreria.
Apesar da improbabilidade,
semelhante à de podermos
assistir da Lua pela TV ao fim da vida na Terra,
há assaltos de incerteza
que logo se quedam com mais ternura despida.
Porque, para além da praia da nossa boca,
nunca haverá outros mares
tão encapelados e mansos como os nossos.


© Jaime Portela, Novembro de 2019


quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Agora que partiste [0251]



Agora que partiste,
Zé Mário,
sinto ainda mais a amargura
nos telhados enrugados dos teus olhos,
não de medo perfilados
mas da inquietação solidária
de ver o teu povo a lutar.

Os tempos foram mudando,
mas a tua vontade resistiu e venceu,
porque a cantiga é uma arma
e porque carregaste contigo
a queixa das almas jovens censuradas.

Por isso,
não posso ficar à margem do teu canto
nem distante do usufruto
que o ensaboar-me na tua voz representa,
porque, contigo, a morte nunca existiu.


A minha homenagem a José Mário Branco (1942-19/11/2019)


© Jaime Portela, Novembro de 2019


quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Mete andorinhas dentro do peito [250]



Se as fontes de onde a vida nasce
se turvam de prostração,
é natural que tombem as mãos
que tecem a esperança.

Para quê teimar num sono
que adormece o sonho
se não erguemos nada mais
que a bandeira da amargura já negra?

Mais vale viver de dúbios intuitos,
troçar da nossa desgraça
ou até vestir olhar de ladrão,
do que sobreviver morto de pureza.

Mete andorinhas dentro do peito
mesmo que migrem ou morram no inverno,
elas acordam-te e fazem-te voar
ao ínfimo sinal de primavera.


© Jaime Portela, Novembro de 2019


quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Da vida, nada sei [249]



Da vida, nada sei,
esforço-me por compreendê-la
ao ritmo do carro de bois
ou dos cavalos de corrida que a puxam,
enquanto ela caminha inabalável
sem se dar ao trabalho de ver
onde põe os pés.

Da vida, nada sei,
tento medir-lhe o pulso,
sentir o rumo que toma
e até ver a cor das suas vestes
sem que ela pestaneje sequer,
deixando-me confuso
a olhá-la
como um boi para um palácio.

Da vida,
nem ao menos sei para que serve,
foi coisa que me entrou,
cresceu e atou,
fazendo de mim fruto cativo,
produto de algo estranho
que nunca me fez saber
o que sou e para onde vou.


© Jaime Portela, Novembro de 2019


quinta-feira, 31 de outubro de 2019

O que ainda não te disse [248]



O que ainda não te disse
é um céu fechado
de palavras silenciadas pela distância,
atadas em cordéis de medo e ensacadas
como pulmões asfixiados num corpo
que aborta as palavras antes da nascença.

O que ainda não te disse
é um rio a transbordar
de palavras povoadas de ternura,
em estantes indecisas ou espalhadas
na cobardia de lençóis
que morrem à míngua do teu perfume.

Mas digo-te,
agora que o posso fazer,
que não tenho palavras que descrevam
o tormento de fugir das sombras
para me entregar
à luz das palavras que te precedem.


© Jaime Portela, Outubro de 2019


quinta-feira, 24 de outubro de 2019

São tuas [247]



São tuas
as flechas que adubaram este árido solo,
agora fértil, de onde brotam flores
com o teu nome colorido nas pétalas.

E voltei a perceber, como em criança,
como é importante um sorriso
no meio da carência
e como é belo ver a criançada
a reclamar algodão-doce.

Mudaste, mudando-me,
e já nada é consentido ou necessário,
nem mesmo adoçantes,
para o sangue de animal selvagem
que por vezes temos na alma.


© Jaime Portela, Outubro de 2019