Translater

quinta-feira, 29 de julho de 2021

O rio desperto [342]

 

O rio desperto no primeiro cigarro

alimenta a teia em que me envolvo, deitado,

como se estivesse à frente de um amigo íntimo.

Arbitro, nas pequenas nuvens de fumo,

atalhos possíveis às avenidas dos sonhos.

 

Delirante, só acordo estando certo que,

continuando deitado, poderia dormir

sem as asas que deformariam o silêncio

e que impediriam que os meus dedos

continuassem a afagar a pele

da tua alma despida de esperas

a traçar teias de arrepios no teu pensamento.

 

Levantei-me,

mesmo vendo que caminhamos às cegas

num labirinto de desejos.

Mesmo sentindo que nunca chegaremos

a um lugar só nosso, semeado de nós.

Mesmo sabendo que dessas sementes

só brotarão flores já serôdias

e que tenhamos de podar as nossas raízes.

 

Levantei-me. Voltei para ti. Porque te sei

com rios de sede e sonhos de terra.



© Jaime Portela, Julho de 2021


quinta-feira, 22 de julho de 2021

Quando o sol estende lá fora [341]

 


Quando o Sol estende lá fora

o seu véu incendiado,

cuspimos nas mãos para cavar no deserto

e sentirmos o que acontece

na sombra de nós.

Quando a neve cai muda

na língua da fuga ao discurso

da inutilidade das palavras,

enterramos o peso das feridas na areia

para ficarmos mais leves.

Só assim

conseguimos abordar de novo as pontes

sem pensarmos nas origens da razão

ou no luar que nos brinda

com a energia do cosmos.



© Jaime Portela, Julho de 2021


quinta-feira, 15 de julho de 2021

Por causa da contraluz [340]

 


Por causa da contraluz

que o teu olhar me transmite,

não vejo os navios que por ti passam no Tejo.

Vejo um sorriso do tamanho de uma ponte,

que me estendes,

e vejo a tua nudez, que se adivinha trigueira

nas feições da tua pele tripulante de emoções.

 

Sinto bancos de areia sentados no teu cais

e remos quebrados no meu barco

que barram a entrada no teu porto.

Por isso, sou marinheiro que percorre

passo a passo a marginal

dos vales perfumados do teu ventre

e dos montes secretos dos teus lábios,

onde me aguardam os teus braços de sargaço

que me libertam e prendem ao teu corpo.



© Jaime Portela, Julho de 2021


quinta-feira, 8 de julho de 2021

Procurei o calor [339]

 

Procurei o calor nas ondas do teu corpo

para esconjurar o perigo iminente de naufrágio

e navegar como um jardineiro de luzes

da tua flora solar, numa dança que derrete

a neve no dorso dos lobos,

onde os nossos lábios,

asas perplexas de pombais superlotados,

foram ventres do fogo que cresceu até ao sol.

 

Como um timoneiro,

com a bússola emperrada no teu olhar

para reencontrar a rota dos teus braços

e neles fundear, rasguei ventos e marés

nas paragens mais remotas,

onde o teu sol se renasce e se põe,

girando à volta de um pranto

que não ceifou o querer,

enquanto a tormenta abrandava

até se assentar, cansada, num mar estanhado.

 

Levanta-te, vem agora até mim,

que eu quero escrever o teu nome na seara

que em nós cresce virgem,

nome tão grande que se possa ver do céu

mesmo depois das colheitas.



© Jaime Portela, Julho de 2021


quinta-feira, 1 de julho de 2021

Dos teus beijos fugidios [338]

 


Dos teus beijos fugidios,

porque clandestinos, retenho a noite

de um quarto da minha esperança de vida

silenciada nos lábios em ditadura.

Mas o dia dos teus olhos mostrou-me

a vontade de ter mais que o teu sorriso.

De Abril ao peito, finalmente,

sobrepostos na querença da descoberta,

passámos a língua nas águas de Maio

que na pele corriam vivas e livres.

E percebemos dentro de nós

uma paisagem comum,

por onde voamos sempre que as penas

reclamam a firmeza da liberdade.



© Jaime Portela, Julho de 2021