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quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Ano novo, vida velha [364]

 


Abrimos o caderno onde apontamos o futuro

e fazemos uns traços coniventes

nas metas não cumpridas do ano que acabou.

Fingimos para nós próprios

querermos desfraldar a bandeira da mudança

e projetamos firmamentos siderais

com o fulgor de campeões.

Para o corpo juramos temperanças

e abonamos bons modos de alma arrependida,

a par de uns quantos sonhos temperados

no fogo inconsistente da esperança.

Como indolentes sabidos que somos,

a cabeça fica leve com o peso

arrumado num recanto, como é hábito,

e somos a resiliência destramente relaxada

na letargia da pouca força que nos resta.

 

© Jaime Portela, Dezembro de 2021




quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

As doze badaladas [363]

 


Logo que as doze badaladas soaram,

fez-se um silêncio de porta blindada, impermeável.

Os pássaros tristes, um de cada lado,

apesar de muito vivos,

sentiram a bravura domada pela espessura,

vazia nas mãos, das festas há muito trocadas.

Um, pintou o mar imenso na porta,

mas não pensou no caminho marítimo para a Índia.

O outro, pintou um pomar, mas não foi

o sabor dos frutos que lhe veio à lembrança.

Agora, com o eco das doze badaladas às costas,

caminham com o óbvio na barriga

a ensaiar o olhar no além do horizonte.

A aliança está morta,

mas todos os caminhos da mente vão dar a Roma,

do outro lado da porta.

 

© Jaime Portela, Dezembro de 2021




quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Lágrimas de mirra [362]

 


Na partida do teu corpo ainda sedento

e vestido como o meu,

arrestei alguns sinais por amainar.

Arrebatados, num mar de vagas rebeldes,

os gestos explicavam-se abraçados

às dunas do prazer insaciado.

Ofereci-te compotas de amor para a viagem

e conformei-te o rosto amargo de cal.

Entretanto, não sei se a solidão

te mantém os olhos vivos

ou se, de tanto lume asfixiado,

já morreram.

Mas quando do deserto se finar a travessia,

terás à tua escolha mimos de ouro

e perfumes de incenso,

ou sabores de lágrimas de mirra.

 

© Jaime Portela, Dezembro de 2021



quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Submisso afastamento [361]

 

Mesmo que te imagine Inverno,

é o teu Verão que me toca no rosto

a beijar-me com o calor

de uma lareira crepitante.

Mas estamos na hora de acorrentar,

no fundo de nós,

o restauro das chagas abertas

pelas ternuras quebradas na boca

e alisar a pele da alma arranhada.

É o tempo de espanar as ideias

e de chamar a Primavera,

para que, até ao Inverno,

perdurem as novas asas que aí vêm.

Escrevo o teu nome e vejo-te feliz,

porque ouço a flor que renasce

no aconchego da neve, ainda que

ao frio do submisso afastamento.

 

© Jaime Portela, Dezembro de 2021



quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Senão tivesses partido [360]

 

Se não tivesses partido,

da alma atraiçoando o nosso encanto,

suspenso de espanto por um adeus,

podias ter sabido o que não disse e percebido

que eram nossas todas as manhãs,

ainda quase não escondidas no andar.

 

Se não me abandonasses,

do amor traindo o rir de Abril

desamparado por um ir de atordoar,

podias ter guardado o fogo aprimorado

nos pássaros alegres das mãos,

quase sem asas mas ainda a voar.

 

Mas levaste o meu sentir para te abrigar

e deixaste-me uma virgem na memória.

Não vou esquecer, por isso,

o riso eterno e limpo dos teus olhos.

 

© Jaime Portela, Dezembro de 2021