Translater

domingo, 28 de junho de 2015

À nossa volta [028]




À nossa volta
só há olhares de riso amargo,
onde o choro
é ingerido com espelhos quebrados
até nausear as entranhas
de vírus caseiros.

Continuamos a intoxicar-nos
da escassez de risos sérios
e de lágrimas claras.

Só pintarei sorrisos abertos
quando vir alguma alma
a perfurar os olhos
com rios de ferro e asas de fogo.

 



sexta-feira, 26 de junho de 2015

Agora é o tempo [027]




Agora é o tempo de acabar
com as capelas imperfeitas
e de sarar estigmas da leitura persistente
do olhar, quase só olhar pensado,
ainda que a braços com a memória
da alma desenhada a preservar.

Agora é o tempo de rasgar a fábula caduca
de Fénix das cinzas renascida,
aprendida num começo já remoto, e
espalhar a sorte
em pacato silêncio, serenamente,
nas cicatrizes do tempo sem lágrimas
pela fratura do gesto restaurador.

Agora é o tempo de aprumar,
sem despotismo, a razão extenuada,
e envergar a liberdade do fado
despindo a causa convertida obsoleta.

Agora é o tempo de juntar
as mil e uma sombras da casca embaraçosa,
que se azulava persuadida da luz,
até transformar a seiva em leite e mel.

Agora é o tempo de embalar
as mãos na carícia obstinada do pincel
que espalhe tinta na luz do sol faminta
e de matar a teia da noite surpreendida
de sozinha habitar a aldeia imensa.

Agora é o tempo justo de te amar.



terça-feira, 23 de junho de 2015

Canta para mim [026]




O teu verbo aceso e moço,
transfusão de sangue aprimorado
que me envolve de janelas voadoras
e me fixa atordoado de perguntas,
porque o ser ávido do teu canto
me faz viciado em temê-las, é a nicotina
que o meu deserto mendiga impaciente.

Os teus lábios
a mais de trinta e sete graus centígrados,
que eu cego à sombra sorvo sem olhar
e me ferram dardos sem abrolhos,
mesmo que deles não afluam
palavras com rosto de ponte levadiça,
são leitos por onde transbordam rios
prenhes dos teus nardos que eu bebo.

Canta para mim,
ave formosa de voz sedosa,
que a cada canto avisto remansos
de desejos renovados
e em cada orelha
há beijos emigrados que te esperam.


sábado, 20 de junho de 2015

Arca de vinte e um quilates [025]




Quando as nossas mãos,
de nós espantadas,
se encontraram cegas de desejo
na sôfrega luz do fundo do túnel,
com a premência fresca
de um equinócio de Inverno calculado risonho,
nessa apressada vereda
de pássaros felizes que sabem para onde vão,
a agitação da mistura,
de mansas águas em pátria fértil semeadas,
tornou-se foz de um mar à nossa espera.

As águas-furtadas
onde guardávamos clamores e burburinhos,
rostos e ansiedades
que espreitavam correntes de feição,
foram então viradas do avesso
e eternizaram o momento
na arca imensa de vinte e um quilates,
desatando o nó górdio (brandas algemas, afinal)
da nossa terna felicidade.


sexta-feira, 12 de junho de 2015

Pardalita [024]




Algures onde a minha inquietação, sem o saber,
começava a germinar,
descobri a pardalita quase sitiada, a esvoaçar,
das sombras tenebrosas a escapar-se.

Já eu mergulhava na intangível fantasia quando ela,
inábil ou visionária, se afastou do seu altar
e pousou a saltitar na mão que lhe estendi,
desconhecendo ser o ninho que há muito ansiava.

Acalentada e amparada, abdicou da partida, ofegante,
exausta de iludir a sua ave de rapina.
Enquanto repousava, agitada, salpiquei-a
com chuviscos refrescantes,
murmurados na inquietude que então me assaltou.

Mas nunca mais lhe vi intento de empenhar
as suas asas para voltar ao ponto de partida.
Agora, dorme comigo, as suas penas
descansam no peito do meu entendimento.


quinta-feira, 4 de junho de 2015

Quero o teu corpo [023]




Vejo o teu corpo
deitado no ar que respiro
humedecido de estrelas.

Sinto o teu corpo
de luar que me incendeia
no frio da insónia.

Ouço o teu corpo
Ao sol e à chuva, que afago baixinho
Com mãos de guitarra.

Cheiro o teu corpo
tépido e branco, que me inebria
com pérolas vivas.

Provo o teu corpo
oásis de mim, que ocupo sedento
cheio de água da paz.

Quero o teu corpo
da alma trajado, que anseio ditoso
e arrebatado.